Por esta ordem: Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi (1931-1997). É o título do livro de Diogo Seixas Lopes, arquitecto e académico, escrito e publicado em língua inglesa (Zurique, ParkBooks, 2015). A ordem indica a precedência de uma inspiração, a prioridade de uma propensão crepuscular que conforma e confere sentido à criação arquitectónica de Aldo Rossi, nascido em Milão, onde também faleceu aos 66 anos, tendo sido o primeiro arquitecto italiano a receber o Prtitzker Prize, em 1991.

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Quando a II Guerra terminou, Aldo tinha 14 anos. Cresceu, portanto, nos escombros materiais e morais deixados pela Guerra, no meio de ruínas sob as quais jaziam os restos já mortos de uma anterior ordem penosamente reconstruída no seguimento da primeira de uma série de barbáries que marcariam o século XX, a Grande Guerra de 1914-18. A vida adulta de Aldo Rossi coincidiu com essas décadas. Mas coincidiu também, até princípios dos anos oitenta, com as décadas “douradas” do marxismo, nas quais prevaleceram uma grande esperança na possibilidade de resgatar definitivamente o mundo dos demónios que regularmente o tinham assolado ao longo da sua antiquíssima existência, e um grande optimismo a respeito da capacidade humana para moldar e dominar o Futuro. No contexto de devastação física e da desolação espiritual do pós-guerra, a arquitectura parecia talhada para desempenhar um grande papel. Não é ela a principal obreira da paisagem construída da nossa vida?

O livro abre com uma necessária incursão pelas origens e evolução histórica do termo «melancolia», desde a Antiguidade Clássica, particularmente grega, passando pelos primitivos cristãos consumidos pela procura de Deus e pela piedade monástica da Idade Média, até ao Renascimento e à Idade Moderna, quando a melancolia cessou de ser encarada como uma patologia fisiológica ou como um mau olhado desferido pelos Deuses ou infligido pelo capricho dos astros. Aristóteles, porém, parece desde os primórdios ter fixado o estatuto lisonjeiro de que a melancolia ainda hoje goza, ao considerá-la um atributo ou característica de homens notáveis pelos seus invulgares dotes filosóficos, políticos, poéticos e artísticos, e deste modo “promoveu a melancolia a um estatuto intelectual e heróico” que ainda actualmente se lhe associa.

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O homem melancólico, introvertido, pensativo, possui uma sensibilidade especial perante o mistério do mundo e as perplexidades da vida, interroga o destino com ansiedade e angústia, carrega estoicamente um tormento poupado aos comuns mortais; aspira com particular e doloroso ardor à completude. A melancolia converteu-se numa forma peculiar “de consciência”, prestando-se, chegada aqui, a “ser relacionada com as actividades de um indivíduo, nomeadamente, com o moldar da realidade”. O conceito, afirma Seixas Lopes, é essencial “para nos ajudar a apreciar a evolução da definição de Rossi da sua arte”; “não é apenas uma qualidade ocasional do seu trabalho, mas uma categoria crucial para interpretar a sua arquitectura”. A obra maior de Rossi é um cemitério. O cemitério de San Cataldo, em Modena, projectado em 1972.

aldorossi_nunocera Entre L’Architettura della Cittá, de 1966, e A Scientific Autobiography, de 1981, nestes quinze anos, Aldo Rossi descreve uma trajectória descendente que o reconduz do alto da sua ambição criadora até à experiência decepcionante das limitações que o condenam. Em 1966, proclama: “Uso o termo arquitectura num sentido positivo e pragmático, como uma criação inseparável da vida civilizada e da sociedade em que se manifesta.” Em 1981, reconhece: “A que poderia eu, então, ter aspirado no meu ofício? Certamente a coisas pequenas, tendo visto que a possibilidade das grandes estava historicamente excluída.” Em que obstáculos tropeçou nessa trajectória ?

A tonalidade marcadamente melancólica da obra de Rossi, filha do seu próprio fundo pessoal (possivelmente inato) e, indissociavelmente, da melancolia com que, entre racionalidade e emoção, considera o mundo, simbólica e materialmente representado por ruinas antigas e recentes, acaba por se transformar na dolorosa constatação da impotência da arquitectura para “dizer” esse mundo destroçado. Um mundo já sem heróis, donde a grandeza se ausentou, enxotada pelas urgências práticas, pragmáticas, impostas pela destruição resultante de duas guerras infames, pela explosão urbana e pela Razão Económica. Uma imposição que a cada momento desmentia a capacidade dos homens, e não menos a da arquitectura, para dar um contributo impressivo para a reconstrução “da vida civilizada e da sociedade em que se manifesta”.

O mundo de Rossi já começava a perder “direcção narrativa” (A. Danto), algo que o nosso já perdeu completamente. E a arte, e a arquitectura enquanto arte, é talvez o domínio em que o estilhaçamento pós-moderno assume proporções mais dramáticas. A arquitectura enquanto arte, ou seja, enquanto edificação cuja beleza transcende o uso a que se destina e a funcionalidade que se lhe exige. Essa beleza é o que lhe permite perdurar. A intemporalidade das catedrais góticas não se deve à sua função de local de culto, que poderia realizar-se num simples barracão (H. Arendt).

Rossi lidou, pois, dentro dos condicionalismos específicos da arquitectura, com o velho problema das possibilidades e dos limites da criação artística, sobretudo se entendida como veículo de um programa político-ideológico. Neste caso não há possibilidades, só limites, e foi contra estes que Aldo Rossi esbarrou. Na juventude, pensava usá-la “para criar uma ordem a partir da desesperada confusão do nosso tempo”, dado o desaparecimento “da ordem clássica das coisas” (V. Lampugnani). Na juventude, Rossi via na arquitectura um instrumento possível para transformar o mundo ou pelo menos para consertar algumas das suas mazelas mais ofensivas. Esbarrou na impotência. Na idade adulta, abandonou esta via militante para exprimir a memória dolorosa do que já não era possível, e o cemitério de San Cataldo revelou-se o receptáculo ideal para acolher um lamento agreste pela impossibilidade de toda a ressurreição. A certa altura, foi tomado pela angústia da nossa própria e eterna incompletude e imperfeição, detectando aí a nascente primordial do impulso criativo, já emancipado das anteriores solicitações mundanas ou até filantrópicas. Faz lembrar os “semi-homens” de Platão em busca das respectivas metades de que foram amputados pela ira punitiva de Zeus.

Não espanta, assim, que Rossi tenha acabado por desistir, dedicando-se no fim da vida ao comércio, à fama e ao dinheiro. Desenhou gadgets, os mais fúteis objectos de consumo, que por definição não subsistem, dependentes que estão de uma referência utilitária ou meramente decorativa, no sentido mais superficial e frívolo do termo. Diogo Seixas Lopes sugere que este último período do trabalho e da vida de Aldo Rossi seja interpretado como uma dolorosa provação pela qual o grande arquitecto ainda teve de passar a fim de exprimir que, afinal, já não havia nada a exprimir num mundo para sempre sombreado pela “Sonnenfinsternis” (A. Koestler) que tolda o romper da alvorada; um mundo que perdera a “solaridade” (J.Pedro Serra) que outrora o iluminava, no apogeu da sua idade adulta, algures entre 1966 e 1981.

Melancolia e Arquitectura é um grande livro, de uma enorme elegância intelectual servida por uma escrita fluente em que não há sinónimos, apenas a palavra exacta (Italo Calvino? Vargas Llosa?), sustentada por uma tensão dramática sem falhas que resiste inclusive nas páginas mais técnicas, onde alguma aridez seria expectável. Notável é também a consistência de todo o argumento, o respeito minucioso pela abundante evidência documental e a rigorosa honestidade com que o autor controla a sua utilização. O livro tem sido objecto de enfático louvor em várias críticas publicadas na mais prestigiada imprensa internacional, e ainda há uma semana foi destacado pelo Guardian como um dos melhores livros sobre arquitectura publicados em 2015. Deve ser lido em Portugal.