No dia dez de junho do ano da graça de 2024, o boletim da entidade gestora do Alqueva indicava que a albufeira estava cheia até à cota 150.71 m, a pouco mais de um metro do máximo possível, armazenando mais do que 4000 hm3 de água. Há cerca de um ano a situação era semelhante e, apesar da variabilidade da precipitação nos últimos tempos, os valores de armazenamento têm sido consistentemente elevados. Boas notícias.

Como previsto por muitos, e ansiado pelo Alentejo, o Alqueva é hoje um elemento fundamental da sustentabilidade económica do sul do continente: mudou a paisagem, modificou o clima, criou condições para uma economia que apesar de todas as suas limitações é capaz de assegurar empregos um pouco melhores do que anteriormente. Apoiou a modernização de uma parte da agricultura portuguesa. No ciclo de estio que precedeu os últimos dois anos, a reserva de água do Alqueva lembrou as célebres reservas de barras de ouro do Banco de Portugal.

Apesar da real importância do Alqueva, a sua construção foi tudo menos consensual. Graças ao site “arquivo.pt” é possível fazer um pequeno exercício de memória e voltar ao dia 11 de abril de 2001 onde um comunicado de uma associação ambientalista muito respeitável, o GEOTA, escrevia (versão em inglês) sob o título “Dinheiro europeu a ser desperdiçado na região do Alentejo” algumas frases contundentes: “O projeto do Alqueva é a pior forma de promover o desenvolvimento”, “Este projeto só pode ser concretizado se os impostos portugueses e europeus oferecerem a água aos agricultores”, “A título de exemplo, e se tudo se confirmar, em 2025 o crescimento da produção agrícola portuguesa, devido ao projeto, deverá ser de apenas 0,65%”, “A salinização das terras irrigadas será um problema imediato, uma vez que as terras irrigadas são sensíveis ou muito sensíveis à salinização (65%) e a qualidade da água prevista é, na melhor das hipóteses, média”.

Um cientista português muito relevante, Miguel Araújo, exprime o seu ponto de vista num fórum de discussão, de uma forma ainda mais expressiva: “Que diremos aos nossos netos para justificar a indiferença com que a nossa geração aniquilou um património que a eles também pertencia? […] Quem irá beneficiar do investimento de 300 milhões no plano de rega do Baixo Alentejo? […] Também se fala de Alqueva turístico. Mas pergunta-se, qual o valor acrescentado de uma charca de água, barrenta, a cheirar a cágados, num país com uma das maioríssimas linhas de costa, por metro quadrado, na Europa?” e aponta quem vai beneficiar: “Naturalmente que o Alqueva irá trazer benefícios imediatos a alguns concidadãos. Para começar, a indústria da construção civil beneficia. Beneficiarão também alguns especuladores que vêm agora os seus terrenos valorizados pela miragem de um desenvolvimento, que ninguém sabe qual é e a quem beneficiará. É possível que alguma indústria hoteleira se instale nas margens da futura albufeira. Um restaurante aqui, uma pousada ali, um campo de golfe acolá”.

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Cinco associações ambientalistas juntam-se numa plataforma de protesto afirmando que o projeto do Alqueva é um crime, acusam o governo de falta de vontade e incompetência, e procuram impedir o cofinanciamento comunitário, o que não conseguem.

Estes exemplos são todos de organizações e de pessoas que têm dado contributos significativos para a preservação do ambiente e o desenvolvimento científico. São pontos de vista importantes e refletem a dimensão dos valores ambientais que foram destruídos para que o Alqueva adquirisse vida. No calor da discussão são vulgares o exagero e as teorias da conspiração. A separação entre portugueses, europeus e agricultores é surpreendente. O crescimento de 0,65% da produção agrícola afigura-se assaz subavaliado. A “charca de água, barrenta, a cheirar a cágados” parece também uma descrição, no mínimo, deslocada. Os campos de golfe têm sempre “má imprensa”, sendo aquilo que Louis Renault, personagem do filme Casablanca, chamava “os suspeitos do costume”, e merecem ser, também aqui, identificados e encostados à parede para a fotografia da praxe. Nada de bom, mas também nada de novo.

Cada elemento da sociedade tem um papel a desempenhar numa decisão tão importante como a construção de uma grande barragem, mas esses papéis não se podem confundir. Cabe sempre aos governos, através das suas organizações, e ouvidos todos os interessados, avaliar e medir qual o melhor compromisso entre ganhos e perdas para os cidadãos e o ambiente. É necessário minimizar os impactos em todas as áreas, com eventuais compensações ambientais sempre que possível. É preciso introduzir na equação a componente económica que é quase sempre tratada de forma sobranceira pelas avaliações unidimensionais. As organizações vocacionais são importantes, mas não são juízes independentes.

Este princípio aplica-se ao Alqueva como a qualquer situação em que estejam em causa valores ambientais, económicos e sociais em parte ou no todo incompatíveis. E a decisão é sempre política, naquilo que esta palavra tem de mais nobre, e exige coragem, porque a capacidade de previsão dos efeitos das medidas é sempre limitada, e todas as decisões acarretam riscos.

Do que sabemos hoje os decisores políticos estiveram bem no Alqueva. O clima vai continuar a mudar ao longo deste século, e a forma dessa mudança é hoje mais clara do que era há vinte anos. Esperamos maior irregularidade da precipitação e períodos de estio mais prolongados. Apesar de haver sempre uma margem de incerteza nas previsões climáticas, o Alqueva afigura-se muito importante para as próximas décadas.

Estamos agora perante novas decisões complexas que envolvem assegurar a disponibilidade de água ao sul do continente e uma partilha equilibrada deste recurso entre as regiões e os utilizadores para viabilizar todas as atividades económicas, bem como os caudais necessários para a proteção dos ecossistemas aquáticos. Muitos dos atores da discussão acalorada do princípio do século não terão provavelmente mudado de opinião, porque ela radica numa hierarquia de valores muito firme, mas na qual outros setores da sociedade se não revêm. Mas temos sempre de confrontar as diferentes previsões com a realidade.

Ouçamo-los a todos com respeito, mas mantendo sempre uma saudável memória de elefante.