1 Tão pouco futuro, tanto passado. Obsessivo passado. Na pressa de nos convencer de que merece um vinte a comportamento democrático, António Costa, no seu discurso de tomada de posse, olhou para trás, ressuscitou a maioria absoluta de Cavaco Silva e sem se envergonhar, prometeu o contrário. Nem ao menosx… parecido. Um bocadinho “parecido” aos dez mais frutíferos anos de pluri reformas que produziram crescimento, desenvolvimento, avanço. Outro modo de falar seriamente de futuro em vez do “futuro radioso” ali prometido pelo primeiro-ministro.

Dentro da “bolha” de vidro esfumado na qual sempre fez política e dentro da qual sempre houve deficientes contactos com a real realidade do país, aquela maioria absoluta de direita de Cavaco, ainda por cima liderada (céus!) por um “outsider”, era insuportável, o povo português tinha-se enganado. Quatro anos depois, apesar do PS, do PC e do esforçado trabalho de manipulação anti-cavaquista do Independente, Cavaco bisou a empreitada, dessa vez com mais votos ainda.

Abusos? Claro que houve, há sempre no uso do poder pelos mal formados. Há na política como há na vida: quem é bem formado, fica incólume e sai ileso das provas a que é sujeito; quem o não é, age em conformidade e o PS sabe disso bem disso, na família socialista agiu-se muito em conformidade e não foi só Sócrates que abusou. Eis o que pelo menos recomendaria maior avisamento e menor despropósito nas evocações do primeiro-ministro mas parece que não: como não pode citar a maioria absoluta socialista do muito autoritário José Sócrates, António Costa dispara sobre a de Cavaco Silva. Confrangedoramente.

2 Nem de propósito. Foi apenas há dias que o mesmo Cavaco Silva teve uma stanting ovation daquelas de reter após o “elogio”, que fez num doutoramento honoris-causa. O ex-Presidente preparara-se com brio, costuma saber do que fala, estava inspirado. Mas quando no final a sala se pôs de pé quase automaticamente numa maré de aplausos, houve muito quem se fixasse num outro factor para além da invulgar qualidade daquela intervenção: a comparação entre personalidades e modos de agir em funções do Estado. Entre os “ingredientes” usados por Cavaco quando as exercia – seriedade, recato, consistência, autoridade própria – e o perfil das autoridades políticas deste tempo: mais inclinados para a leveza, a loquacidade, a (omni)presença. A supremacia da forma sobre a substância.

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São escolhas ditadas pelas correntes de ar que sopram sobre o “hoje”. Se é certo que os votos certificaram as escolha, os resultados em nada porém as avalizam: o país não conhece um resultado digno desse nome.

3 Foi também há dias que Durão Barroso deu uma excelente entrevista televisiva na RTP, e excelente por mais de um motivo. A seguir pouco se falou nela. E no entanto… diante de nós esteve alguém com notável conhecimento geoestratégico, solidez na circunvalação por várias sedes e circunstâncias da política internacional, despretensiosismo na evocação dos grandes deste mundo e uma interessante segurança ao falar de todos eles que só podia advir de uma real proximidade. E obviamente de muito trabalho comum, em múltiplos encontros, formais ou informais. Em resumo, uma imensa experiência política, no currículo fora de comum de um cidadão do mundo. Não é todos os dias que há prestações suculentas como esta ao serviço da política.

E depois foi-se a ver e a ninguém pareceu interessante, útil, justificado, ou fosse o que fosse, tomar nota – e já nem não digo elogiar – de uma entrevista como a que se ouviu. Por coincidência ou acaso (vá lá saber-se) estive a ler há pouco tempo um texto quase brutal que escrevi no Expresso quando Durão Barroso trocou Lisboa por Bruxelas. Talvez mesmo o mais afiado de quantos se escreveram na altura, tão cortante era. O que em nada me impede de, passados vinte anos, ser capaz de avaliar uma prestação televisiva que só honra o país e a política portuguesa.

4 Infelizmente não me parece tratar-se apenas da tão portuguesa inveja face a alguém que se notabilizou por inteligência e mérito. Antes fosse, inveja, estamos habituados a ela há quase nove séculos. Foi pior: foi o usual veto de “direito de cidade” que há décadas a esquerda pratica sem sombra de pecado, face à direita, considerando (?) que o sistema deve naturalmente dispensá-la. E enfurecendo-se, exaltando e mentindo em ocasiões de indisfarçável “aperto” público, como foi e será por exemplo o caso de uma maioria absoluta.

Eis um extraordinário universo mental (e moral) onde se acha seriamente – e se pratica! – que o dito sistema, a vida politica, as instituições, o espaço público, os outros poderes, estão suficientemente bem ocupados e representados pelo PS e pelos seus ex e futuros parceiros. Representam entre si e por si só a democracia portuguesa, ela é deles. Quando porém liderada por políticos, governantes ou Presidentes fora dessa bolha política, cultural e mediática onde pontificam também alguns gurus datados e ressentidos, Portugal logo “regride”: torna-se automaticamente autoritário, senão fascista.

Há qualquer coisa de insalubre nisto tudo. Lembro-me bem de que quando António Guterres chefiava o Governo, era um herói e tão “próximo”: um dia em plena rua não dera ele, no início da sua governação, o número do seu telemóvel a um cidadão que se lhe queixara não sei de quê, para que assim pudesse queixar-se ao vivo ao próprio chefe de Governo? A media enlevou-se com governante tão compreensivo, mas Durão Barroso quase teve de pedir desculpa por ter ganho as eleições em vez de Ferro Rodrigues. E quando o mesmo Guterres, hoje secretário geral da ONU, intervém nas Nações Unidas para (ineficazmente) se amargurar em directo com o estado do mundo, as televisões ouvem-no com maiúsculas. Quando Durão Barroso presidia à Comissão Europeia nada disto se observou, antes a crítica, o remoque, o acinte, quase sempre despropositado. Também são escolhas.

5 Há muito que a nossa democracia está doente, não é de hoje nem de ontem. Mário Soares combatia quanto podia o centro e a direita mas sabia que o regime – e ele próprio – precisavam como pão para a boca de um e de outra. E que uma democracia não o seria sem os seus pontos cardiais em funcionamento. De então para cá as coisas – nas esquerdas – foram ficando diferentes, depois sombrias e agora doentias.

Qualquer dia precisamos de respiração assistida. Não? Já esteve mais longe.