A opinião é fascinante. Mais fascinante e antitético é opinar sobre o valor fundamental da própria opinião. Mais controverso é, em tempos de superficialidade express, desafiar a opinião enquanto variável relevante, frequentemente monopolista, na influência no processo de comunicação e decisão política. O artigo que se segue tem um objetivo único: questionar o papel que a própria opinião deve ter na sociedade, correndo o risco de o leitor concluir que se trata dum manifesto contra a liberdade de expressão. Não é e perceberá porquê.
Os primeiros debates de todos as crianças usualmente começam em contexto informal, provavelmente nos corredores da escola ou nos balneários duma qualquer arena desportiva. Seja o tópico o jogo de futebol de Domingo, o melhor artista (YouTuber nos dias de hoje) ou qualquer outra banalidade, é comum que as partes se galvanizem à volta de um particular gosto pessoal. Tal é a emotividade dos anos formativos que os debates rapidamente sobem de tom e a animosidade urge a intervenção de um adulto – o arauto da moderação. Mais usual é que qualquer tipo de debate termine com uma reprimenda pela vivacidade da interação e com o tão tradicional como português “Gostos não se discutem!”. No fundo, são opiniões, porquê discuti-las?
Este selo de axioma que gostos e opiniões carregam é profundamente paradoxal. Por que razão devem gostos e opiniões, por defeito subjetivos, não serem discutidos? Afinal de contas, não deveriam ser apenas os factos os únicos privilegiados na altura de encerrar abruptamente uma discussão?
A equação do crescimento dos movimentos anti-sistema é, em grande medida, suportada pelo peso crescente da opinião na discussão pública. Inversamente, o espaço no debate político para os factos vê-se continuamente reduzido, assumindo-se implicitamente que factos são, na verdade, sobrevalorizados. Mais espaço para opiniões subjetivas e menos espaço para verdades factuais germinaram um espaço órfão no cenário político, para ser preenchido por quem melhor dominasse a arte do bem-falar, independentemente da verdade de discurso. É precisamente isto que está a acontecer em Portugal.
Momento após momento, ano após ano, esta estratégia de descredibilização da decência e da verdade levou-nos ao problemático ponto de erosão que vivemos. Neste espaço vazio reinam as crenças e o poder messiânico do culto da personalidade, ao invés da razão e do seu poder lógico. Neste seguimento, personalidades carismáticas surgem como autênticos salvadores da pátria, agarrados ao trunfo de que para serem bem sucedidos em política têm apenas de cumprir com um requisito curricular: saber captar a atenção popular. Por isso mesmo, figuras magnéticas – provavelmente porque fizeram carreira à volta da opinião sem fact-checks, da não necessidade de serem realmente decentes e da não responsabilização pela verborreia estéril – emergem como figuras centrais dos movimentos anti-sistema. Neste anti-sistema reina a máxima de que é melhor ser um infame, do que não ter fama. Esta visão do mundo e posição na sociedade veio para durar enquanto continuemos a aceitar a mentira. Afinal de contas, a mentira corre o risco de se confundir com opinião e a sua banalização contribui apenas para a sua subsistência.
Vivemos na sociedade da pós-verdade. Na sociedade em que opiniões não se discutem, mas factos sim. Preenchem-se parangonas e espaços televisivos discutindo a benignidade das vacinas, a importância de usar máscara ou a veracidade do aquecimento global. Discutem-se factos, suportados por evidência dessa coisa chamada Ciência. Opiniões, não: cada um com a sua e seguimos em frente.
Somos a sociedade das tecnologias de informação, onde esta flui de forma tão livre como provavelmente nunca noutro momento da História. Mesmo assim, mesmo em situações de excecional acessibilidade da informação, o espaço mediático continua dominado pela sedutora arte do sofismo. Quando assim é, quando as opiniões, mais do que factos, não se discutem, geram-se coágulos de subserviência – muitas vezes baptizados de militância – que servem apenas o propósito último de chancelar as opiniões de alguém, humano consequentemente falível, como verdades absolutas.
Alicerçado ao poder crescente da opinião está o fenómeno peculiar do desfasamento da evolução da ciência e do papel do processo científico no argumentário político e posteriores decisões. Parece, e é, uma trivialidade dizer que nunca a ciência foi tão evoluída. A falsificabilidade de Popper assim o exige. A todo o momento, a ciência evolui, tornando novas teorias científicas válidas pela refutação de teorias incumbentes. Dito isto, sendo uma trivialidade que a ciência nunca foi tão evoluída, não é insignificante o ritmo exponencial com que esta evolução se deu. A aceleração tecnológica abriu portas para que o teste científico exista agora em moldes operacionalmente impossíveis em anos passados – veja-se a notável história do desfasamento temporal entre a teoria do bosão de Higgs (1964) e a sua provisória validação (2013). Neste sentido, e particularizando, a ciência dos dados, a ciência que permite tratar uma quantidade enorme de dados com a força computacional para a descoberta de padrões até então incógnitos, emergiu como uma oportunidade única para políticos e decisores privados. A capacidade de migrarmos para um processo de discussão e tomada de decisão com base em factos é o equivalente à descoberta da bússola – ao invés de navegarmos com base em instintos e mitologias, passamos a navegar com base em conhecimento probabilisticamente superior.
Se é verdade que universidades, com a finalidade da investigação académica, e empresas, com a finalidade de tornar as suas decisões de negócio mais certeiras, apostaram na melhoria dos seus processos por base da informação, é evidente que o ritmo ao qual esta tendência chegou aos decisores políticos é infinitamente mais limitada. O caso da pandemia que vivemos é gritante. Da esquerda à direita, sem excepção, defendem-se medidas de prevenção sem o suporte científico, apelando mais aos corações dos Portugueses do que aos seus cérebros. Com a quantidade de dados existentes, ainda que com o elevado nível de incerteza associado, não seria prudente explicar aos Portugueses o racional quantitativo de cada medida? Não seria assim mais fácil justificar a amigos e família o porquê de terem que seguir certas medidas, ao invés de poder apenas argumentar: “Se eles dizem, é porque é melhor”? Compare-se, a título de exemplo, o modelo português com o paradigmático modelo de comunicação alemão durante a pandemia – país chefiado por uma líder com investimento pessoal em ciência, que conhece profundamente a importância do rigor analítico no processo de decisão. O caso não é, naturalmente, específico da gestão da pandemia. Os casos do prolixo plano Costa e Silva, da incompleta análise de cenários do caso TAP (comentada no artigo anterior), ou simplesmente a forma como decorrem os debates televisivos, onde se esgrimem argumentos usualmente sem racional quantitativo, são exemplos desta mesma realidade.
A razão de ser deste fenómeno, dada a transversalidade do mesmo no aparelho partidário português, terá unicamente uma justificação: a política é como é, porque é como os Portugueses a querem. Quisessem os Portugueses uma outra abordagem, uma alternativa aos processos atuais, e teriam dado esse sinal. O problema deste racional está em assumir que a resposta aos incentivos é imediata. Não é. Há um hiato entre a transformação da sociedade e o timing da resposta dada pelos políticos. Naturalmente, infere o leitor, que o problema está precisamente aqui – durante este peculiar período temporal, onde a sociedade se transforma e o modus operandi da política fica agarrado ao modelo de sociedade anterior. É precisamente neste período da História em que estamos, tal como estivemos na revolução liberal do século XIX – onde se deu uma crescente simpatia popular por uma visão liberal e constitucional do Estado – e tal como estivemos na revolução do 25 de abril do século XX – onde se deu uma crescente simpatia por uma visão democrática do Estado. São períodos onde é exigida mudança, mas o aparelho governativo, tradicionalmente curto-prazista e agarrado ao status quo, demonstra inércia para a mudança. São precisamente estes, os momentos onde a instabilidade cresce, a divisão entre modernistas e estagnadores aumenta e a sociedade agita como varas verdes. É o período em que vivemos.
Os Portugueses mudaram. Não somos nem pensamos da mesma forma como o fazíamos há décadas atrás. O mundo à nossa volta foi alvo da mais profunda disrupção com a revolução da informação, das redes sociais e do entretenimento. As empresas mudaram e adaptaram-se num contexto concorrencial, de forma a explorar as virtudes da tecnologia, do digital e do poder transformador dos dados. As universidades mudaram, simultaneamente acelerando o processo de investigação científica ao desbravar terreno a um ritmo sem precedentes, e cooperando, direta ou indiretamente, com o tecido empresarial. E os decisores políticos? Qual a grande mudança das últimas décadas?
Nas memórias de Obama (“A Promised Land”), o antigo presidente norte-americano argumenta que a sua prioridade número um durante o período de governação foi garantir um processo de tomada de decisão consistente, lógico e preparado para evitar os naturais vieses humanos no momento da decisão. Mais do que nunca, explica Obama, é importante que líderes definam um processo de tomada de decisão suportado por evidência, racional e que molde a sua ação num caminho coerente. No caso português, é precisamente este processo que parece estagnado. Se toda a envolvente em torno da política portuguesa foi alvo de uma profunda transformação, a comunicação e decisão política parecem claramente não ter acompanhado esta evolução.
Reinam as opiniões, desvaloriza-se a importância dos factos, desconsidera-se a mais-valia da ciência e aprofunda-se o assincronismo entre sociedade e política. As fronteiras entre verdade e mentira esbatem-se e a cultura do bitaitismo popular vai alimentando movimentos anti-sistema que ameaçam as pedras basilares da vida em democracia. É tempo de mudar, da política se adaptar aos novos tempos, sob pena da mesma se tornar num instrumento auto-destrutivo numa sociedade que, mais do que nunca, está órfã de decência, coerência, ética e respeito.