Era uma vez uma mulher sozinha num território perigoso. Pequena e magra, enfrentava todas as noites uma terrível ameaça. No entanto, nas histórias, os pequenos, os fracos, os frágeis possuem sempre um amuleto redentor. Ela conhecia um poderoso encanto: era capaz de construir uma parede de ar à sua volta para se defender. Os silhares daquela invisível parede eram as palavras. Assim que uma história lhe saía dos lábios, as pessoas paravam para ouvir, com o olhar fixo, em transe, esquecendo os seus afazeres, as suas ansiedades e as suas zangas. As suas fábulas eram, para todos, um refúgio contra as incessantes ameaças do tempo, da morte e da solidão.

“Espero que este livro jamais seja lido.” Eis as palavras iniciais de Fogos, livro publicado pela primeira vez em Paris, em 1957 pela Plon. A autoria é de Marguerite Yourcenar, conhecida não apenas pelas inesquecíveis Memórias de Adriano, mas também por ter sido a primeira mulher admitida na Académie Française, em 1980.

Poucos sabem, porém, que a pequena Marguerite, nascida em Bruxelas em 1903 com o apelido Crayencour (que, por anagrama, mudou para Yourcenar), com apenas oito anos manejava Racine e Aristófanes e que, aos doze, dominava grego e latim na perfeição.

Símbolo da intelectual feminil, em 1935, aos trinta e dois anos, viu-se no meio de uma, para usar as suas palavras, “crise passional”. Foi então que escreveu Fogos, num momento que já “não era propriamente a juventude”, como a própria afirma na primeira linha do prefácio.

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O livro entrelaça poemas unidos por uma “certa noção de amor” com nove contos raivosos a partir de mitos clássicos. De Fedra a Aquiles, de Pátroclo a Clitemnestra, passando também por Maria Madalena (a única protagonista “não grega” da antologia), a autora tenta aplacar, dando voz ao mal mais antigo, as chamas de uma dor tão aguda que não sabemos nunca suportar, pois “chegamos sempre virgens à dor”.

Percebo agora, com uma perplexidade que talvez me saiba mostrar melhor o caminho do que quando erradamente acreditava ser linear, que Fogos não é nem a história de um amor ardente nem de uma ígnea dor. O livro será talvez, apesar do título, a crónica de uma implosão; de um fogo que, em vez de lamber cumeadas, cavalgando hectares e hectares, morde e remorde um cepo, dormita sob a cinza no remanso do borralho – brasido em cólera lenta daquele mal de que tanto gostamos de padecer e em que ardemos e explodimos, perdemos e nos reencontramos.

Partamos da sua afirmação inicial: quem publicaria um livro se não quisesse que fosse lido? Isto é, quem acenderia um fogo senão para se aquecer? Virgílio não teve grandes dúvidas quando, dez anos de trabalho e doze livros depois, pediu, no seu testamento, que queimassem a Eneida – felizmente para nós, Vario Rufo e Plotio Tuca não lhe respeitaram a vontade: salvaram o manuscrito e, posteriormente, Augusto ordenou que fosse publicada tal como tinha sido deixada.

O verbo explodir deriva do latim explodere, “espantar batendo palmas”. A sua origem encontra-se em plodere, derivado por sua vez de plaudere com a adição do prefixo ex-, cujo significado era na verdade “bater palmas” – donde o nosso aplauso. O verbo para indicar algo que explode, sim, mas para dentro, espalhando flamas pelo interior e que de fora não é perceptível, implodir, nasceu como decalque de explodir, com a substituição pelo prefixo in-, já no século XX.

«Diz-se louco de alegria. Dever-se-ia dizer sábio de dor”, escreve Yourcenar a certa altura. Não existe qualquer relação entre o incêndio da alma quando sentimos que a vida já pouco vale e aquele “fogo” que devasta as terras transformando-as em áridos desertos. A milenar raiz para indicar “aquilo que queima” – a esse fogo dava-se, em latim, o nome ignis – desde o momento em que foi descoberto, galho contra galho, pederneira contra pederneira, foi imediatamente trocado em todas as línguas pelo mais simples e domesticado focus – “lar dos deuses domésticos”.

Eis então que, por metonímia, ao fogo foi, em latim, dado o nome focus. É necessário, contudo, muito cuidado com a metonímia, aquela que traduz, ou transfere, o significado de uma palavra para outra: se etimologicamente ocorrer uma “troca de nome” ou “identidade”, significa que algo permanece por baixo. Nada contra as figuras de retórica, isto é, contra a capacidade de a linguagem “imaginar”, desde que não se tornem num engano perante as evidências. As metonímias exigem decifração e rastreamento até à origem, para não se perderem, migrando para aqui e para ali, tradução após tradução.

Foi mais fácil, para não dizer tranquilizante, dar àquilo que queima o nome focus, lema pertencente à família fovere, “aquecer”, e que remete para o lar, para a família, para a sopa quente e, mais genericamente, para a tranquilidade doméstica. Estamos, portanto, muito longe etimologicamente da raiz de incendere, verbo latino que significa “incendiar”, e daquelas chamas que se propagam pelas nossas certezas, pela nossa confiança, pelas nossas palavras. A lareira crepitante, lençóis bem entalados, um pijama sobre a colcha e um prato quente sobre a mesa: é tão mais fácil pensar assim, enquanto o coração, em chamas, ferve e borbulha. Recusamo-nos a admitir que, tal como após um incêndio, nada ficará como antes – nem uma só toalha permanecerá intacta sobre a mesa.

Pergunto-me que fogos seriam aqueles que consumiam Yourcenar? Ou terá sido antes uma implosão, algo que não se vê de fora e a que quase ninguém presta atenção, à medida que nos afundamos? Quem sabe quantas vezes se terá ela colocado essa questão, enquanto com o passar dos anos se desvaneceu a memória daquele Hermes, pseudónimo do homem a quem Fogos é dedicado, cristalizado nos traços literários daquelas chamas que nada chamuscaram da mulher pequenina e frágil que Yourcenar era.

Sejamos etimologicamente claros – disso depende a nossa vida, para não sermos queimados pelas palavras: se estivermos em fogo, por dentro ou por fora, seremos, por palavras, mais aterradores e perigosos do que o espetáculo violeta de uma radiação nuclear. Ou melhor, se for uma explosão, os bombeiros chegarão o mais rápido possível para apagar as chamas – e haverá uma série de amigos, conhecidos e desconhecidos para lamentarem. Tratando-se de uma implosão, pelo contrário, ninguém virá em nosso auxílio. Por que razão o fariam? No máximo dir-nos-ão as palavras que naqueles momentos detestamos ouvir – e que toda a gente acaba sempre por dizer: era um fogo de palha, mais cedo ou mais tarde isso passa.

Entretanto, vamo-nos sentindo explodir por dentro, abre-se uma voragem no peito e os nossos pensamentos mais sombrios mergulham do alto nas nossas fossas oceânicas ou mais fundo até, e prometem nunca passar.

Marguerite Yourcenar conclui o seu livro afirmando que «a felicidade não se constrói senão sobre os alicerces do desespero. Apenas agora, precisamente agora, posso começar a construir».

Somos uma espécie particularmente frágil: nem demasiado forte, nem demasiado rápida, nem particularmente resistente à fome, à sede, ao calor ou ao frio. Não estamos adaptados ao voo nem à vida sob as águas. Nascemos completamente indefesos e a nossa infância é mais longa do que a de qualquer outro animal. Um simples vírus minúsculo é capaz de perigar hábitos e a liberdade de toda uma comunidade. Uma particularíssima brisa, contudo, impulsionou-nos para um desenvolvimento inesperado, para um progresso imprevisível. Essa faculdade é a nossa imaginação, que, aliada à linguagem, nos permite sonhar o inconcebível, fortalecermo-nos uns aos outros, calafetar o silêncio e o equívoco. Somos a única espécie que explica o mundo com histórias, com palavras, que as deseja, anseia por elas e as usa para amar, reparar os rasgões do tempo e da memória.

Graças à precisão das palavras, podemos, portanto, proteger-nos do caos ardente das chamas – construir-nos e reconstruir-nos, se necessário – recordando que podemos sempre confiar no fogo, cuja implacável lei, queimando e ardendo, também nos ilumina o caminho.