“Um milagre chamado Portugal”. Já lá vão quase quatro anos, o país tinha resistido relativamente bem ao primeiro embate da pandemia da Covid-19 e o Presidente da República explicava assim, com este escrupuloso rigor científico, o sucesso. Depois, quando a coisa descambasse ao ponto de chegarmos a ter o maior número de casos e de mortes por milhão de habitantes do mundo, ao menos não se lembrou de culpar alguma praga bíblica – menos mal. E, no entanto, volta e meia, dou comigo a pensar se o senhor Presidente não teria afinal razão: não apenas naquela ocasião, mas noutras, quantas vezes não tem Portugal sobrevivido por milagre?

Não vale a pena recuar a Ourique nem Aljubarrota. Basta, caro leitor, ir ali à Alcântara, ao Centro de Congressos de Lisboa, onde esta quarta-feira terá terminado, enfim, a contagem dos votos da emigração. Sim, no dia 10 de Março, contámos 6,1 milhões de votos em cinco horas, mas, depois, precisámos de mais 10 dias para contar os últimos 300 mil. Portugal é um milagre sim, senhor. Matemático, desde logo.

Como é que isto sucede? Ora, é mais ou menos assim: a 4 de Fevereiro, mais de um civilizado mês antes da data marcada para as Legislativas, enviámos não menos civilizadamente 1,5 milhões de boletins de voto por carta, a outros tantos emigrantes inscritos, em 189 países do mundo (épico). Destes, cerca de 300 mil, um quinto – nada mal –, entenderam exercer o seu direito de voto e começaram a enviar de volta os boletins a 20 de Fevereiro. Sim, leu bem: ou seja, na prática, não precisámos de 10 dias para contar os votos da emigração; precisámos de três semanas. Dirá: é talvez um senhor sozinho, e com a vista fraca, que conta tudo. Não. Bom, será então um mensageiro, com uma carruagem puxada por um cavalo cansado, que percorre o mundo a recolher os boletins? Também não. São 700 pessoas, de múltiplas idades e graduações oftalmológicas, reunidas no acima citado Centro de Congressos, munidas de computadores e outras tecnologias espantosamente contemporâneas.

Ora, numa conta rápida, isto significa que cada uma delas tem de contar 428,57 votos. Quanto tempo é que pode demorar? Uma manhã? Com duas pausas para café e um jogo de paintball a meio, para desenfastiar e estimular o espírito de grupo?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sucede que a mesma lei eleitoral que insiste na sacrossantidade do dia de reflexão, enquanto permite, ao mesmo tempo, o voto antecipado uma semana antes, e em deitar fora, só nestas eleições, 1,2 milhões de votos que não serviram para eleger deputado algum, em vez de criar o famigerado círculo de compensação, tem ainda mais esta originalidade: garantir um mês para o envio dos votos dos emigrantes – começando 19 dias antes das eleições e terminando passados 10, mais precisamente até às cinco da tarde de ontem. Votos esses que as 700 pessoas reunidas no Centro de Congressos só puderam começar a contar às cinco da tarde desta segunda-feira, para parar duas horas depois e retomar no dia seguinte, talvez para poupar a vista cansada. Diga lá: não é um milagre ainda termos um país? Um país pacífico e ordeiro que, apesar de tudo, ainda tem o respeito olímpico mínimo por quem decide o funcionamento destas coisas?

Num tempo em que as democracias estão mais ameaçadas do que nunca, um estado cronicamente em crise e dependente do governo para tudo, dá-se ao luxo de tirar um mês para gerir e contar 300 mil votos que vão resultar em quatro deputados, isto é, 1,7% do Parlamento. Nunca tínhamos reparado nisto porque, normalmente, mal contam para o totobola, mas, desta vez, calha implicarem esse pequeno pormenor de poderem decidir as eleições.

É um gostinho lusitano pelo suspense, para não dizer: uma atracção pelo abismo. Deixa-se tudo pendurado – Parlamento, instituições, lutas profissionais –, enquanto a imprensa e as redes sociais se enchem de especulações sobre todas as possibilidades matemáticas em que o governo poderá ser de direita, ou de esquerda, ou extremista, ou moderado, ou híbrido de assim-assim, e confabulam as circunstâncias químico-linguísticas em que um sólido não poderá passar ao gasoso, invertebrado, estado de nim. E, nisto, o (e)leitor certamente pergunta: “Mas eu já não votei? Não fomos lá mais de seis milhões votar? Porque é que ainda andamos nisto?”

Parece o futebol pós-invenção do vídeo-árbitro: o jogo já acabou, mas ainda estamos à espera de saber se foi golo. Com este requinte adicional: parte significativa desses votos não puderam sequer ser contabilizados, por terem sido enviados sem a cópia do cartão do cidadão obrigatória, a mesma situação que levou, ainda há dois anos, o Tribunal Constitucional a, simplesmente, declarar nula a votação pelo círculo da Europa e a mandá-la repetir. Como se vê, aprendemos imenso desde então.

Deixemos, por agora, de lado qualquer investigação ao porquê das escolhas destes compatriotas a olharem a casa de longe; para outro dia o comentário ao resultado da cruzada do tribuno Augusto contra os populistas. Não falemos sequer de voto electrónico. Seria uma extravagância assim tão grande pedir que os votos da emigração fossem enviados até à hora do fecho das urnas no dia das eleições, e contabilizados ao mesmo tempo que os outros, ou mesmo antes, afim de se conseguir essa extraordinária proeza de saber o que vai ser o nosso futuro no dia em que o votamos?

Imagine o leitor que o país era grande. Mas não. É só este nosso comovente pedaço de terra miraculado, que esbanja votos pela janela ou os deixa esquecidos a arrefecer, como um ricaço da democracia. Bem-aventurado seja.