A convite de um padre católico cujo nome omito para lhe poupar incómodos, assisti pela primeira vez a uma Missa Tridentina, celebrada em latim e de costas, ritual único formalizado entre 1570 e 1962, no Missal Romano. A língua e o ritual cruzam a fé católica com as raízes civilizacionais da Europa, cerimonial cuja origem remonta ao século III, motivo para uma parte da Cúria Romana das décadas recentes tomá-lo de ponta como manifestação «ultraconservadora», eufemismo religioso do anátema «extrema-direita».

Bem mais de um milénio depois, não por acaso no ciclo histórico de explosão do esquerdismo, o ritual único em latim foi substituído, em 1962, pelo ritual da missa católica atual no Concílio do Vaticano II (1962-1965) e, em 1970, o Papa Paulo VI deu um passo em frente ao perseguir e tentar extinguir uma tradição milenar que, felizmente, a Providência vai permitindo que resista. Se os rituais da missa não foram estáticos no decurso dos séculos, a rotura histórica inédita resulta da proibição do latim como língua de celebração católica, interregno que duraria mais de três décadas. Em 2007, o Papa Bento XVI reconciliou a Igreja Católica com a sua identidade e história milenares fazendo regressar a Missa Tridentina como ritual alternativo para pouco depois, em linha com a posição persecutória iniciada por Paulo VI, o Papa Francisco voltar a introduzir fortes restrições à Missa Tridentina desde 2021.

Na sua terra ancestral, a Europa Ocidental, um ritual cristão católico milenar está hoje forçado a só poder ser celebrado fora das igrejas paroquiais, por isso a missa a que assisti em 2024 foi na capela de um hotel, em Lisboa, espécie de catacumba onde se escondiam os cristãos nos primórdios da religião. Inacreditável!

Paradoxalmente, a situação adensa o interesse pela velhíssima Missa Tridentina. Deixa de ser uma mera «curiosidade histórica», «interesse turístico» ou «coisa diferente» para se tornar em questão cultural substantiva de sobrevivência da identidade dos europeus comuns na atualidade.

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Após a substituição da Missa Tridentina pelo novo ritual (1962), não foi mero acaso a perseguição ostensiva ter tido início no ano de 1970. Coincidiu com o ciclo da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976), de Mao Tsé-Tung, e com o advento do auge do poder comunista da antiga URSS durante a guerra fria (1945-1991), a década de setenta. Nesse contexto, o Papa Paulo VI decidiu romper com um ritual profunda e genuinamente europeu ocidental, por isso o latim passou a alvo cirúrgico a abater, para em troca se impulsionar um renovado ecumenismo cristão próximo do então «internacionalismo proletário» soviético que, com o passar dos anos, rebatizou-se em «multiculturalismo», «globalismo» ou «cultura inclusiva». Tudo antieuropeísmo desbragado!

Podendo conservar ao menos em parte uma tradição católica milenar como alternativa, no entanto uma Cúria Romana revolucionária preferiu surfar a onda histórica da viragem política mundial à esquerda desde os anos sessenta e setenta tornando-se, ela mesma, marco do suicídio cultural europeu com laivos de etnocídio.

A evidência é tanto mais preocupante quando se confronta o cristianismo católico com o Islão no mesmo ciclo. Dos anos sessenta até hoje, enquanto aos católicos foi imposto o abandono do ritual originário da missa em latim, a Missa Tridentina (fruto do Concílio de Trento, 1545-1563), os islâmicos persistiram no seu ritual originário iniciado no século VII, a celebração religiosa em árabe onde quer que seja. Por se manter capaz de aproximar a identidade de povos, nações e países diversos e dispersos, porém com identidades coletivas derivadas da mesma tradição secular originária islâmica, a força do Islão cresceu nas últimas décadas ao ritmo do enfraquecimento do catolicismo que, por razões políticas, paga o preço do abandono persecutório das suas raízes identitárias seculares europeias, a eterna alma-mãe de todas as variantes do cristianismo que hoje existem no mundo.

A diferença entre uma língua «morta» (latim) e uma língua «viva» (árabe) não é, em si, fator explicativo, em especial no âmbito religioso. O decisivo remete para o significado que lhes é atribuído pelas sociedades e suas instituições, isto é, uma língua dita «morta» pode, paradoxalmente, funcionar como garantia da vitalidade identitária de um culto religioso, até porque o latim tem uma relação direta com as línguas europeias «vivas».

Em 2007, ao voltar a legitimar a missa celebrada em latim, o Papa Bento XVI procurava reverter o ciclo de empobrecimento espiritual, intelectual e cultural das sociedades europeias que estava e está longe de se restringir ao campo religioso cristão, mas este paga e pagará por tabela. E Bento XVI também será sempre uma voz Divina no interior da Igreja Católica.

Em primeiro lugar, ao ser decretado o seu desaparecimento das missas em 1970, o latim não resistiu ao desaparecimento das escolas, empobrecimento em toda a linha das identidades europeias. O abandono religioso da língua arrastou o seu abandono intelectual, cultural e social.

Portugal é um caso sintomático. Talvez nunca tivesse existido o Novo Acordo Ortográfico (1990) se o latim tivesse resistido, e não resistiu por responsabilidades diretas de uma Santa Sé virada à esquerda.

A profundidade civilizacional da questão linguística bastaria para recomendar a cada um a experiência de uma Missa Tridentina. Se o ritual verbal em latim for acompanhado pelo respetivo missal (texto escrito), é provável que se vivam momentos de metamorfose de uma língua hoje supostamente distante e complicada, o latim, em idioma ritualizado venerável por nunca perder a capacidade de acender a luz da profundidade histórica e civilizacional da fé cristã, da língua portuguesa (como de outras línguas europeias), das identidades europeias, do que fez a grandeza dos povos europeus. Será isso ofensa ao Divino?!

Em segundo lugar e não menos grave, o latim sempre esteve simbolicamente associado ao que se pode designar por alta cultura europeia: tradição filosófica e literária milenar, música clássica, ballet, ópera, pintura e o resto. Por tradição, sendo o ritual da missa o alimento cultural dos desfavorecidos e classes médias europeias, o latim sempre lhes abriu os espíritos à sedução pela alta cultura, que o progresso social de alguns depois permitia desenvolver. Desaparecido o latim de missas e escolas, naturalmente a má moeda (a indigência cultural) ocupou o lugar abandonado pela boa moeda (a alta cultura).

Daí em diante, o que se tornou culturalmente sedutor para desfavorecidos e classes médias? A literatura fast-food tipo Miguel Sousa Tavares, a «filosofia» terceiro-mundista tipo Boaventura de Sousa Santos e demais seita académica e intelectual «globalista», escolas-intelectuais substituídas por escolas-madraças-esquerdistas, hip-hop, rap e breakdance, «filosofia» africana Ubuntu, arte-grafiti que tornou imundo o espaço público habitacional quanto mais pobre o meio socioeconómico, ideologia de género impossível de germinar em contextos de complexidade intelectual ou cultural inerentes à alta cultura europeia, entre um rol interminável de perdas civilizacionais severas.

A perseguição à Missa Tridentina instigada pela Cúria Romana nos seus ciclos «progressistas» nunca foi indiferente ao facto da alta cultura europeia – que inclui Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Santo Inácio de Loyola, Santo António, entre tantos outros – ter passado de manifestação civilizacional nobre, que é!, à categoria de instrumento de «opressão» ou «discriminação» cultural alegadamente imposto pelas velhas elites europeias às classes desfavorecidas, minorias ou povos não-ocidentais e, vamos descobrindo, a alta cultura europeia também foi desqualificada ao nível das águas pútridas de supostos «racismo» e «xenofobia».

Fica um dos retratos maiores da capitulação civilizacional da Europa às mãos da contracultura destrutiva introduzida pelo progressismo soviético, o tal que propagava que a religião era o «ópio do povo» para divinizar o seu novo ente supremo, o Comunismo. O papel da Cúria Romana acabou por ser decisivo no escancarar das portas das sociedades europeias ocidentais no seu ponto mais sensível, ao ataque à sua identidade civilizacional contruída ao longo de dois milénios em torno do cristianismo, identidade bastante fragilizada num contexto de extinção do latim.

Daí o terreno social apelativo para o avanço do esquerdismo que, na hora da verdade, nunca protege a Igreja Católica porque não protege a sua alma originária, a civilização europeia.

No caldo espiritual e cultural populares empobrecidos desde os anos sessenta, a Igreja Católica só tem de se queixar de si mesma. Verdadeiro sábio, o Papa Bento XVI, em 2007, sem impor contrarroturas internas, avançou para um exercício de arrependimento e contrição face a um desvio imposto aos católicos desde o Vaticano II (1962-1965) e, sobretudo, desde 1970 com o Papa Paulo VI. No entanto, em 2021 o Papa Francisco voltou a teimar no mesmo contra o que se rotula de «ultraconservadores» da Igreja Católica, a tal alegada «extrema-direita».

Crentes e não crentes, resta a cada um de nós fazer a sua parte em homenagem a Bento XVI, Papa que soube salvar uma semente civilizacional milenar preciosa antes da mesma secar em definitivo. Que nenhum europeu continue a fazer de inocente, antes que bata no peito: «Por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa»!