A passagem recente do Papa Francisco por Portugal fez-me regressar a memórias de infância, a Moçambique de 1974-1975, quando o líder da guerrilha da Frelimo, Samora Moisés Machel, surgiu aos moçambicanos qual epifania. Seguidos na rádio e jornal, os seus discursos tomavam conta do país de norte a sul pelo que representava o poder diferente da sua pessoa, pela forte carga emotiva que suscitava, pelo que parecia historicamente certo, porque um outro mundo era possível. Dominava a infalibilidade da mudança e, no espaço público, de todos os lados só elogios. Discordâncias, guardava-as cada um no seu íntimo.

Paradoxalmente desse vulcão sentimental nasceu a mais devastadora guerra civil de sempre que deixou (bem) mais de um milhão de cadáveres (1976-1992). O carismático Samora Moisés Machel acabou morto (1986) e o país que «salvou» em transição de território colonial promissor e próspero a país independente pobre, inviável, em dissolução continuada desde então.

O calvário dos moçambicanos foi fruto de emoções avassaladoras justíssimas pela aceitação inédita dos excluídos – todos, todos, todos – que, em simultâneo, remeterem as responsabilidades do peso da sua existência para fora de si mesmos, para o passado ou para os outros («colonialismo», portugueses, homem branco, Ocidente, «capitalismo», sociedade opressora). Com isso, foi rompida a inevitabilidade humana de cada sujeito individual ou coletivo ser o primeiro e principal responsável pelo seu destino. Reconhecer em Jesus Cristo um libertador bem-sucedido ao longo de mais de dois mil anos obriga, pelo contrário, a manter sempre presente o inevitável peso terreno da cruz de cada um, assim como fazer da compaixão e caridade deveres humanos, não direitos humanos, a tentação em voga. Isso faz toda a diferença.

Na Jornada Mundial da Juventude (JMJ Lisboa 2023), o Político Francisco alinhou com Samora Moisés Machel. Na viagem de regresso a Roma em conversa com a imprensa, o Papa Francisco esclareceu que a Igreja Católica é para todos, todos, todos, mas não aceita tudo, tudo, tudo. Essa ambiguidade marca o atual pontificado. Os discursos do primeiro personagem, do Político, têm impactos massificados que ecoarão nos tempos e os do segundo, do Papa, resumem-se a minúsculas notas de rodapé.

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É o balanço de horas e horas a fio em televisões e rádios e de opiniões e mais opiniões na imprensa escrita que se prolongam. Ainda assim, o grande enigma continua no silêncio dos deuses. Se o silêncio contemplativo e introspetivo faz parte substantiva da fé católica, por isso não é assunto, em sentido inverso temos o dever cívico de quebrar os silenciamentos ilegítimos. Estes sobrepõem a política à religião, arte exímia da esquerda, a dona da comunicação social no seu assalto despudorado ao catolicismo.

Aí reside o coração da crise do catolicismo que nunca esteve tão evidente como no pontificado de Francisco. Só uma suposta «direita» inútil se demite do dever de travar a esquerda, de devolver a Igreja à religião e a política à política. O Chega não pode desertar desse campo de batalha, embora se exija uma enorme lucidez.

1 O dilema papal: liderar a Igreja Católica ou liderar o Mundo?

O pontificado de Francisco segue em rota de colisão com os dos seus antecessores, João Paulo II e Bento XVI, papas cujas heranças continuam bem vivas. O Papa Francisco introduziu no coração do catolicismo a fragmentação ostensiva entre o bom-progressismo e o mau-conservadorismo sem inverter os termos, como se não houvesse mau-progressismo ou progressismo-assassino.

A orientação escancarou as portas da Igreja Católica ao ativismo político numa conjuntura histórica especialmente sensível de fragmentação entre a esquerda-progressista e a direita-conservadora. A missão da Igreja Católica e a sua força residem, justamente, na razão inversa da aproximação ao campo político e ativismos filiados. A prudência e neutralidade política da Igreja são sagradas, mais ainda quando há um passado de condenação justíssima do nazismo-assassino e de absolvição incompreensível do comunismo-assassino, este tão ou mais danoso para a Igreja Católica do que a pedofilia.

Após a contenção magistral de Bento XVI, Francisco sustenta a sua popularidade na radicalização interpretativa do dogma da infalibilidade papal que o protege em matérias da fé e sobretudo dos costumes (ou moral social). O dogma foi introduzido 1870 como que a reforçar, por antecipação, a proteção institucional da Igreja da avalanche de movimentos políticos e sociais anticlericais e anticatólicos do século XX, mas hoje vivemos dias de subversão do seu sentido originário.

Isso porque a esquerda já percebeu que serão raríssimos, em rigor inexistentes, os fiéis católicos dispostos a quebrar o dogma da infalibilidade papal ou sequer a tecer considerações públicas críticas sobre o mesmo, ainda que tenham dúvidas ou discordem dos posicionamentos do seu Papa. Tal docilidade espiritual silenciosa da fé, aliada às inclinações politizadas da Santa Sé, deixa os fiéis católicos vulneráveis, como nunca, a ataques políticos externos intensos, fenómeno que desestrutura não apenas os velhos equilíbrios internos ao catolicismo, mas também desestrutura as sociedades de matriz cristã no seu conjunto. Livre dos dogmas da fé ou de mero respeito pelos que vivem da contenção ou silêncio, a esquerda dispara ad nauseam contra uma comunidade religiosa impossibilitada de reagir nos mesmos termos.

Escudada no pontificado do «seu» Francisco, o alvo da esquerda é claríssimo: concretizar o assalto político que lhe faltava na sua ambição insaciável de controlo mental absoluto das sociedades e, finalmente, cantar vitória sobre os legados de João Paulo II e Bento XVI. Depois de mais de meio século de assalto às universidades, meios de comunicação social, escolas, meios intelectuais e artísticos, restava o último e mais resistente reduto: a Igreja Católica.

Tais atitudes e comportamentos intoleráveis da esquerda nada têm de novo. Nova é apenas a guerra que o Partido Chega está disposto a travar fora da Igreja, mas a propósito dela. Se a esquerda atropela o campo espiritual ou religioso para concretizar ambições do campo puramente político, ideológico, identitário, ativista, progressista, o Chega cumpre o dever de fazer guerra no último campo para proteger o primeiro, isto é, restaurar a autonomia entre a fé religiosa e a política. Ser conservador é defender a tradição civilizacional que, desde o século XVIII, distingue para muitíssimo melhor o cristianismo e o ocidente em relação ao islão e mundo árabe. O ocidente está a capitular em toda a linha face ao «multiculturalismo», mas o Chega jamais poderá dar essa guerra por perdida.

Tudo tão cristalino. Quem manda na cabeça das pessoas é quem manda nas sociedades. Se nos séculos passados reis e nobres se submetiam ao poder tutelar do clero, hoje políticos poderosos e multimilionários fazem o mesmo em relação à esquerda. Alterar o rumo é fazer com que os pontificados de João Paulo II e Bento XVI não fiquem para a história como os últimos e mais fortes «empecilhos» ao maior totalitarismo de sempre da história, sustentado no controlo mental dos povos de todos os continentes por um único campo político, a esquerda. A utopia de o «capitalismo» mandar no mundo é das mais sofisticadas ilusões criadas por Karl Marx, tão bem-sucedida que até um Papa fê-la ascender à categoria divina.

Portanto, se o que se designa por «crise» da Igreja Católica se circunscrevesse ao campo espiritual ou religioso, nada haveria a dizer. Só que tudo muda quando um Papa, Francisco, não se satisfaz em ser um líder religioso supremo para ambicionar ser também, e sobretudo, o líder social supremo dos povos de matriz cristã, centrando em si as inevitáveis implicações políticas, culturais, migratórias, distribuição da riqueza, «extremas-direitas», ambientais, identidade de género, por aí adiante. Tal ambição impõe, inevitavelmente, a tentação permanente da dissolução da fé católica na vida mundana.

Edmund Burke, pai intelectual do ideal conservador, acertou em cheio quando, em 1790, a propósito da Revolução Francesa (1789), identificou na dissolução social da religião uma seriíssima ameaça ao destino dos povos de matriz cristã. O que Edmund Burke jamais imaginou é que isso um dia seria instigado a partir do interior da cúria romana.

2 Vaticano: singularidades do único Estado sem sociedade

Anote-se que o Papa Francisco dirige um Estado territorial centralizado como qualquer outro, sendo que a esquerda não resiste em tomar de assalto todos e quaisquer Estados. Todavia, o Estado do Vaticano possui duas características, uma singular e outra genérica.

A característica singular. Por alguma razão o Estado do Vaticano não possui uma sociedade com capacidade de autorreprodução no seu território, como qualquer povo ou sociedade. É um caso único em que Estado e Sociedade não coexistem. Nesse sentido, o Vaticano limita-se a ser um Estado-Instituição, distinto do Estado-Sociedade, filiado a espaços institucionais dispersos pelas sociedades do mundo que se chamam igrejas. Isso faz toda a diferença.

A característica genérica. Quem hoje dirige o Vaticano exibe uma limitação intelectual confrangedora de não distinguir a instituição (o espaço reservado aos seus membros, e uma instituição com mais de dois mil anos só fará sentido se for manifestamente conservadora) da sociedade (além da característica autorreprodutiva, o espaço aberto a todos independentemente das pertenças institucionais, sem limitações, onde tudo pode ser discutido, dissolvido, reinventado, alterado, criticado, rejeitado, incluindo instituições ou a existência de Deus, por aí fora).

Pelas razões referidas, o Estado do Vaticano é de todos na face da terra o que mais tem de funcionar circunscrito a limites institucionais, isto é, é o que mais deve preservar com cuidados especiais as fronteiras entre a instituição e a sociedade por todo o mundo. Não é de esperar da parte do Estado do Vaticano a ambição de estabelecer relações plenas, abertas, totais com as sociedades do mundo, posto que o Vaticano não é um Estado-Sociedade, apenas um Estado-Instituição.

Em contraste revolucionário com o pontificado de Bento XVI, a fragilidade do atual pontificado é precisamente a de ignorar que instituição e sociedade são o oposto uma da outra. Quando não se distinguem com clareza entre si, quando não vivem em tensão mútua, instituição e sociedade destroem-se uma à outra. Ao Papa Francisco, como a qualquer papa, compete evidenciar um poder institucional fortíssimo, poder que a prazo se fragiliza seriamente quando se transforma em poder social pleno. Essa será a herança pesada do atual pontificado.

Os sintomas são inequívocos. O Papa Francisco ultrapassa de forma reiterada em velocidade de cruzeiro a fronteira do campo espiritual ou religioso para dissolver o catolicismo no campo social pleno, aquele que está além da Igreja, dominado por questões terrenas do campo das paixões políticas, tensões económicas e laborais, disputas culturais e identitárias, lutas feministas e de género, tensões migratórias, entre outras. Pior. O Papa Francisco é ostensivo na escolha de um de dois lados, o da esquerda-progressista contra o da direita-conservadora. Recebe Lula da Silva e recusa Bolsonaro. Foi o que aconteceu no final da idade média quando a Igreja se afundou em atabalhoadas questões terrenas, o que desembocou na cisão entre católicos e protestantes com Martinho Lutero, a partir de 1517.

A JMJ Lisboa 2023 evidenciou como os erros do Vaticano instigam práticas políticas demasiado grosseiras. Através de jornalistas, comentadores, políticos-jornalistas, políticos-comentadores, a esquerda aproveitou, e não parará de aproveitar, todos os detalhes e mais alguns para elogiar ao máximo dos máximos o Papa Francisco. Essa estratégia ideológica e política serve para massificar ainda mais a lavagem cerebral dos povos no sentido de assegurar que tudo o que se aproxime de ideais conservadores, mesmo que mínimos, será sempre mau, errado, prejudicial, injusto. Esse é o ataque estrutural que a esquerda faz ao catolicismo desde o século XVIII, portanto um dos lados está a capitular.

Independentemente da vontade do Papa, a lição da esquerda às massas a partir da JMJ Lisboa 2023 ficou claríssima: «Até dentro da Igreja o conservadorismo é um horror. Finalmente chegou o Papa que dá razão à esquerda!!!». Qual lucidez revolucionária de Lenine, Estaline ou Mao Tsé-Tung, a «crise», «falhanço», «problemas», «pedofilia», «perda de influência» da Igreja Católica e tudo o mais de mau nasce do passado, nasce de ideias conservadores. Poderá a Igreja Católica libertar-se de mais de dois mil anos de tradição para se transformar em território de revoluções progressistas? O outro mundo que é possível na fé católica deixará de ser no céu e passará a ser na terra, tal como manda a esquerda e como sonhou o revolucionário moçambicano Samora Moisés Machel?

3 Juventude católica: o exato oposto da juventude esquerdista

As ruas de Lisboa que reuniram mais de um milhão de jovens católicos de todo o mundo deixaram um outro sinal dos tempos que a comunicação social omite: a fortíssima contradição entre a fraqueza do envelhecido ideal de juventude esquerdista (progressista nos valores existenciais) e a força revigorada do ideal de juventude católica (conservadora nos valores existenciais).

Em meios sociais ricos, e sobretudo em meios pobres, a JMJ Lisboa 2023 comprovou a capacidade da Igreja Católica de formar jovens com altíssima qualidade moral, cívica, social, com forte sentido de autorresponsabilidade. Por que razões a milenar semente cristã regressou à luz do dia com tanto impacto? Porque esses jovens trouxeram para o espaço e debate públicos um modelo de preparação para a vida nos antípodas dos massificados ideais progressistas e revolucionários de esquerda que há meio século tomaram de assalto tudo quanto é instituição que regule atitudes e comportamentos de crianças, adolescentes e jovens: universidades, escolas, comunicação social, meios intelectuais e artísticos. Como outras igrejas cristãs ou a religião judaica, a Igreja Católica sempre resistiu seguindo um outro caminho. Na JMJ Lisboa 2023 esse modelo chegou, viu e venceu. David voltou a vencer Golias.

Por norma, os jovens católicos presentes em Lisboa representam aqueles que, por todo o mundo, seguiram percursos no interior da sua fé desde a infância por razões familiares, iniciados há uma ou duas décadas, bem antes de eventuais impactos de ambições reformistas do atual pontificado em matérias de fé ou costumes. Portanto, não é preciso inventar a roda para garantir ao catolicismo um futuro promissor pleno de vitalidade espiritual, sentido existencial, dignidade.

O problema não é a qualidade da formação católica. É apenas a guerra massificada movida pela esquerda contra a função educadora do catolicismo fora do Estado. Essa missão fornece à sociedade frutos, em termos de formação de crianças, adolescentes e jovens bem melhores do que os da esquerda. Esta nunca se satisfez com a mera influência na vida social sustentada na sua força cultural e civilizacional, que sabe não ter, por isso tornou o Estado seu monopólio para, por essa via, sobrepor de forma abusiva e ilegítima em qualquer democracia a educação (que deve ser da família e das instituições que esta decida como mais adequadas para acompanhar o crescimento dos seus filhos, como a religião) ao ensino (apenas esse deve ser tutelado em exclusivo pelo Estado e resumido a matérias científicas, técnicas ou académicas).

Daí que a JMJ Lisboa 2023 tenha deixado evidente a necessidade de travar uma esquerda viciada em esvaziar a Sociedade na relação com o Estado ao usurpar à família o direito de educar os seus filhos. Tal como todos os partidos da direita, a Igreja Católica tem o dever de combater por essa causa. O Partido Chega tem estado isolado nessa guerra, ambição que ficou muito clara no seu programa político e no seu programa eleitoral. De que esperam os outros?

É no mínimo penoso, até ridículo, assistir a uma esquerda que todos os dias acusa o catolicismo de «crise» e «falhanço» para não olhar para o seu próprio umbigo. O poder avassalador que a esquerda possui na formação de crianças, adolescentes e jovens fez disparar a indisciplina e violência escolares, tensões familiares, maus comportamentos por todo o lado, agressividade e faltas de civismo, delinquência juvenil, comportamentos de risco, irresponsabilidade, desafios de saúde mental sem precedentes, entre outros fenómenos que afetam adolescentes e jovens como nunca.

Por isso, a haver consequências justas do sucesso da JMJ Lisboa 2023, a maior das quais tem de ser o descalabro da influência hegemónica da esquerda na educação e no ensino.

Depois do que se viu em Lisboa, empurrar a fé católica para reformas de padrão facilitista-progressista-inclusivo em matérias de fé e costumes com impacto na formação de crianças e jovens irá arrastar o catolicismo para o mesmo padrão que, por exemplo, massificou o acesso ao ensino à custa da destruição grave da qualidade da formação escolar por todo o mundo de matriz cristã, em particular nos países e segmentos sociais mais pobres. Massificação e qualidade não podem continuar a ser mutuamente exclusivas. Basta ensinar a cada indivíduo, desde a infância, que ele é o primeiro e principal responsável pelo seu destino, e esse é o pressuposto do saudável destino coletivo de povos e sociedades. É essa a obrigação da Igreja Católica.

4 Pedofilia: o impossível compromisso moral entre catolicismo e esquerda

Nos anos recentes, a esquerda nunca parou de alimentar o tsunami anticatólico a pretexto da pedofilia, tentando ao máximo dos máximos reduzir a Igreja a essa imagem pública. Claro que a pedofilia tem de ser absolutamente condenada, mais ainda no seio da hierarquia católica. Porém, a dimensão da vitalidade dos jovens católicos durante a JMJ Lisboa 2023 remeteu o problema à sua real dimensão.

A força com que os jovens católicos confrontaram o mundo e a sua relação com o clero católico trouxeram à luz do dia uma religião bem mais complexa e capaz de vencer por si mesma os piores infortúnios. É simples. A pedofilia entre o clero católico e outros fenómenos funestos do passado ou do futuro, como a inquisição em séculos anteriores, foram e serão ultrapassados com toda a dignidade moral e cívica porque a tradição católica nunca foge ao confronto com as suas verdades mais dolorosas, nunca renega as suas responsabilidades e pecados.

Daí o catolicismo ser, na sua matriz moral, o absoluto oposto do dogma mais sagrado da esquerda, o dogma dos dogmas: remeter sempre, sempre, sempre responsabilidades e culpas de vícios, erros e crimes para os outros, para fora de si mesmos. Esse dogma da esquerda cumpre-se mesmo quando acumula milhões e milhões de cadáveres por responsabilidades próprias ao longo de décadas e décadas, mesmo quando sociedades e mais sociedades ou economias e mais economias são destruídas geração após geração.

Pode um papa transformar-se em escudo moral da esquerda e do seu progressismo no interior do catolicismo? Podem a esquerda e o catolicismo algum dia serem moralmente compatíveis?

Por isso, os jovens católicos persistirão sempre uma ameaça séria a uma esquerda que, cada dia mais desesperadamente, se agarrará ao pontificado de Francisco. É muitíssimo mais provável que, na vida adulta, esses jovens se afastem do que se aproximem dos ideais de esquerda. Por isso, a esquerda não hesitará na fragilização da fé católica sempre que lhe seja dada a menor oportunidade. A direita é o oposto de tudo isso.

O facto é que o Papa Francisco enclausurou o seu pontificado numa camisa de forças. Quanto mais Francisco insiste em alimentar a radicalização da imagem de renovador aberto aos mais variados progressismos esquerdistas, matéria especialmente sensível junto dos jovens, em sentido inverso mais o Papa impõe injustamente aos fiéis católicos esforços suplementares na sua submissão à infalibilidade papal em matérias de doutrina da fé e, sobretudo, de costumes (ou moral social).

Logo, o esticar da corda da tolerância da Papa face a pecadores mundanos (como homossexuais, num contraste radical com as questões sexuais sensíveis no interior do clero, indulgência necessariamente extensível a assassinos, cônjuges infiéis, corruptos, preguiçosos, irresponsáveis, parasitas, entre tantos outros que, pelo mundo, destroem famílias, sociedades ou economias), essa radicalização da bondade indulgente de Francisco alimenta-se, por sua vez, da indulgência (re)forçada de muitos fiéis católicos em relação ao seu próprio Papa, dada a sua submissão ao dogma de infalibilidade papal. Quando um papa suga em seu proveito a fé dos crentes, esse não deve ser um problema seriíssimo no interior da Igreja Católica?

5 Abraço de urso da esquerda ao Papa Francisco ou o contrário?

Uma instituição clarividente com mais de dois mil anos acumula uma apurada sabedoria latente, por isso nunca se subestima a lucidez dos católicos. A submissão dos fiéis ao dogma da infalibilidade papal pode ser interpretável, pelo menos em certas circunstâncias, como a fórmula de Deus escrever direito por linhas tortas.

Se assim for, o abraço de urso crescente da esquerda à Igreja Católica, de fora para dentro, pode ser a semente da contrarresposta de dentro para fora. Os que mais tentaram destruir o catolicismo, desde a Revolução Francesa (1789) e sobretudo desde a Revolução Bolchevique na Rússia (1917), sempre se congregaram em torno de ideais, partidos políticos, movimentos intelectuais, culturais ou sociais de esquerda. Sendo o Papa atual o primeiro ostensivamente convocado por eles como trunfo isso permite, em simultâneo, a Francisco gerar um novo ciclo de expansão mundial da fé católica em meios sociais (como jovens e famílias empobrecidas) e em sociedades de diversos continentes (as saídas de independências ou transições democráticas de pendor socialista antirreligioso) blindados a tal desígnio nas últimas décadas. A Europa de tradição católica é exemplo disso.

Constituindo crianças e jovens terreno primordial de disputa do controlo mental das sociedades que a esquerda nunca teve o mínimo pudor em tomar de assalto, mesmo para lá das fronteiras da razoabilidade face a questões especialmente sensíveis (sexo, drogas ou política), a verdade é que o Papa Francisco conseguiu quebrar o gelo e voltar a revigorar a legitimidade da religião católica em meios tutelados pelo esquerdismo. O atual pontificado está a conseguir colocar na moda o catolicismo entre crianças e jovens e seduzir a comunicação social, o que ficará como herança notável.

Daí que, no futuro, um pontificado pós-Francisco suavemente conservador deixará a esquerda sem saída, sem poder voltar atrás no reconhecimento que está a conferir ao catolicismo. Nesse sentido, o pontificado de Francisco tem tudo para marcar a antecâmara da viragem histórica que deu à esquerda, desde a Revolução Francesa (1789), um ascendente continuado sobre a Igreja Católica. O pontificado progressista de Francisco poderá ser, paradoxalmente, o apogeu e a reversão dessa tendência histórica nas próximas gerações ou séculos. Se assim for, o atual abraço de urso da esquerda aos católicos acabará de pernas para o ar. O papado terá cumprido o seu inevitável desígnio divino.