Não é surpresa. Não pode ser surpresa. O equilíbrio político e económico que António Costa ardilosamente montou em 2016 baseava-se num pressuposto: nada (ou muito pouco) poderia correr mal. Infelizmente, depois de anos em que tudo, de facto, correu bem, com um Presidente em Belém que é um nítido nulo, crescimento económico, a Europa a continuar o programa de compra de dívida soberana, as matérias-primas em baixos custos, as coisas começaram a correr mal em 2020. É verdade que a pandemia e, agora, a guerra são factores exógenos completamente fora do controlo de qualquer país. No entanto, sendo choques exógenos, interagem com as condições endógenas para criar o resultado final.

Já muitos antes de mais o escreveram. O fim da austeridade não o foi verdadeiramente. Simplesmente António Costa alterou a fórmula para conseguir fazer a quadratura do círculo: satisfazer Bruxelas e os idiotas úteis de esquerda, que ainda devem estar a perceber como é que apoiaram o PS durante seis anos e, no final, viram os seus eleitores cair na esparrela montada pela elite socialista, coadjuvada pela comunicação social amestrada, que induziu o voto estratégico com o suposto obejctivo de manter o Chega fora do poder, verdadeiramente transformado no seguro de vida dos socialistas.

Em vez de manter a qualidade dos serviços públicos gerais, como o acesso ao SNS, a educação, a ferrovia, preferiu começar a desinvestir nesses serviços e gastar o dinheiro que daí advinha para repor os cortes salariais impostos durante a bancarrota originada por Sócrates e presidida por Passos Coelho, a quem coube o ónus e o custo político de retirar Portugal do buraco. No fundo, a fórmula de Costa era simples. Cortar no SNS e serviços públicos, cujos efeitos são difusos e dificilmente mensuráveis pelo cidadão comum sem grandes gastos cognitivos, e repor salários à função pública e reformados e pequenas, pequeníssimas, benesses a grupos sociais. Notem que Costa decidiu não utilizar a folga para descer os impostos, permitindo, assim, que todos recuperassem salários e poder de compra e não apenas a função pública. Para quê melhorar igualmente o nível de vida de alguém que ganha 1200 euros no sector privado e no sector público, quando pode melhorar de forma mais reforçada o nível de vida de alguém que ganha 5000 euros no sector público? O efeito seria menor e os efeitos eleitorais menos interessantes.

Os resultados desta política estão à vista. O Serviço Nacional de Saúde está nas últimas. Depois da pandemia, durante a qual, apesar do esforço magnífico de todos os profissionais, o SNS saiu francamente mal da fotografia, como mostram todos os dados comparativos, a normalização da vida começa a mostrar a divisão cada vez maior da sociedade Portuguesa. A cegueira ideológica de Marta Temido, provavelmente das piores ministras da saúde de sempre, fê-la mudar a Lei de Bases da Saúde, a qual, desde 1991, havia servido perfeitamente a governos de Esquerda e de Direita, sendo flexível o suficiente para não servir de instrumento contra-maioritário para as vontades conjunturais das maiorias políticas. Acabando com PPP, por exemplo, em Braga e no Beatriz Ângelo, onde os níveis de satisfação dos doentes eram altíssimos, preferiu que os utentes fossem mais mal servidos, mas que o fossem exclusivamente pelo Estado.

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A cegueira ideológica de facto mata, neste caso literalmente. Sejamos claros, o problema dos médicos é apenas um: o SNS não paga o suficiente para esta profissão altamente especializada e com as qualificações que estes profissionais têm. Havendo ofertas financeiramente mais atractivas no privado, ou até no estrangeiro, estes profissionais não aceitam trabalhar por tão pouco. Querem ter médicos no SNS? Paguem o preço de mercado. A ideia de alguém vai trabalhar na Função Pública por amor à camisola, como mostrou uma série de artigos deliciosos de propaganda pura saídos estrategicamente no Público nos últimos dias, é simplesmente risível. De qualquer modo, não há grande problema. Entre a função pública com a ADSE e a classe média-alta com os seus seguros de saúde, pagando duas vezes pelo mesmo serviço (!), a probabilidade de haver chatices a sério é pouca. O povo é manso e já mostrou que acredita em tudo. De resto, para que servem os beatos que pululam os jornais a cantar loas ao Dr. Costa senão para guiar os indígenas?

A juntar a tudo isto, esta semana ficámos a saber que Portugal é um dos países que, surpreendentemente, apenas para quem está distraído, está relutante acerca da entrada da Ucrânia na União Europeia. Não sejamos ingénuos. A posição que o Dr. Costa articulou tem uma explicação simples: os fundos que Portugal recebe da União Europeu são indispensáveis para manter o status quo em Lisboa, garantindo a permanência no poder de uma “elite” política e económica decadente, incapaz de reformar o país e de o tornar produtivo. A entrada da Ucrânia na União Europeia tornaria as contas da Coesão bem diferentes, levando a uma mais que provável diminuição da quantidade de dinheiro que Portugal recebe. Isto significaria o fim do poder Socialista tal como o Dr. Costa e os seus apaniguados o concebem. Aí, sim, tornar-se-iam (ainda) mais visíveis os problemas estruturais de Portugal. É preciso impedir que isso aconteça a todo o custo.

Como o Dr. Costa não leu o suficiente, não sabe que um dos efeitos que a União Europeia tem na consolidação e melhorias democráticas vem precisamente do chamado ‘lock-in effect’, através do qual as instituições nacionais melhoram com a perspectiva de entrada na União Europeia e com as exigências impostas, por exemplo, pelos Critérios de Copenhaga. De resto, quando Portugal iniciou formalmente o pedido de adesão à então CEE, guiado por gente da cepa do Dr. Soares e o saudoso Medeiros Ferreira, estávamos ainda sob a tutela do Conselho da Revolução e tínhamos uma Constituição com problemas fortíssimos. Portugal estava longe de ser uma democracia. No entanto, os nossos amigos Europeus não nos fecharam a porta na cara. Pelo contrário, foi a aposta da Europa em Portugal que nos tornou uma democracia plena e com os meios materiais para a transformação do país.

A situação de Portugal é delicada e será cada vez mais difícil esconder o beco sem saída a que o regime se conduziu. Com um povo e um tecido produtivos exangues, a elite terá cada vez mais dificuldades em extrair recursos para manter o regime de fachada socialista. Os Portugueses, no entanto, parecem gostar de tudo isto. Em Janeiro reforçaram a maioria do Dr. Costa. Têm aquilo que merecem.