Não senhor, não é verdade que as crianças acreditem em cartas ao Pai Natal. Em primeiro lugar, porque as cartas são folhas de papel e elas escrevem cada vez mais em teclados e isso de desenhar letras já era. A seguir, apanhar um desejo que vos pelo ar, elegê-lo como um sonho que se vai traduzir numa realidade, esperar (sofridamente) que não demore a chegar, e ter esperança (muita esperança!) que alguém as escuta – e, bondosamente, que olha por elas – é demasiado próximo da Disney ou de filmes como o Bambi e coisas lamechas assim, e isso não dá com nada. Ademais, entre Pais Natal nos shoppings e nos hipermercados, Pais Natal a trepar para as varandas, sem nunca saírem do mesmo sítio, e Pais Natal em tudo o que é montra, a certa altura, no meio de todos os Pais Natal, não fica nada claro se os Pais Natal representam uma clonagem com que se enfia o barrete (vermelho!) a uma criança ou uma história de verdade.
Mas quem é que esse tal Sr. Pai Natal: alguém que vive no céu e, qual chuva de estrelas, abre, por esta altura, o seu coração e as enche luz? Tenham dó! A seguir, só falta dizermos às crianças que, afinal, sempre há vida em Marte (mesmo que o País do Natal pareça ser um lugar perdido no fundo do espaço, ou o Pai Natal seja como aquelas pessoas que se metem numa cápsula da Virgin, por exemplo, voam em excesso de velocidade, a 100 km de altitude, por pouco mais de 10 minutos, e, quando regressam, trazem a luz de quem chegou do céu com a capacidade para terem outra vida)? Mas, imaginando o País de Natal como uma imensa central de correios, com a escassez de mão de obra que graça por aí, quem é que abre, de sorriso bonacheirão, as cartas das crianças, e as lê com tempo e com ternura, e lhes responde, delicadamente, atirando, depois, pela chaminé o presente dos seus sonhos?… Até porque as crianças conhecem mais os exaustores de fumos e os recuperadores de calor, e muito menos o lado farrusco que dá um toque de charme a uma chaminé. Ressalve-se, também, que às crianças se diz (e se repete!) que é feio mentir. Logo, mentirmos em conjunto não é uma boa prática educativa!
Acresce que, se as crianças estiveram distanciadas dos seus avós durante meses a fio, não fica nada claro que alguém com idade para ser seu bisavô tenha tamanha liberdade de movimentos e tantos comportamentos de risco (como sair à noite sem máscara e sem sobretudo, e sem distanciamento social), por mais que a direção geral da saúde recomende: “Natal sim, mas de janela aberta!”. Ou que o Calcitrim ou os anti-inflamatórios para as dores articulares façam milagres. Mesmo que o Pai Natal seja uma espécie de motorista da Glovo dos nossos sonhos e veja na entrega de presentes a todas as crianças, entre as 10 da noite e as 6 da manhã, uma oportunidade de complemento de reforma. Até porque serviços de entrega excepcionais têm taxas suplementares, o que faria do trabalho de Pai Natal um factor de enorme descriminação social, contrária ao que se convencionou traduzir como Espírito do Natal. Depois – deixemo-nos de coisas! – as renas não voam! Têm elas, porventura, asas?… E, mesmo que voassem, os animais também têm direitos e não consta que possam trabalhar até à exaustão, carregadinhos com toneladas de presentes, sem descanso e sem limites urbanos de tempo de trabalho e sem as protecções mais elementares!
Mas, afinal, de que é estamos à espera: que uma criança se arrisque a perguntar a uma assistente virtualiza lá de casa – como as da Amazon ou da Google, por exemplo – se o Pai Natal existe e ver todos os sonhos que erigiu com magia e carinho a estatelarem-se ao comprido diante duma frieza, alto-falante e cheia de inteligência artificial, que a leve a concluir que andou a ser levada ao engano até não poder mais?… Será que os pais não recordam o desapontamento com que descobriram que o Pai não existe? E não chega já, para as crianças, assistirem por esta altura, a uma espécie de debate entre negacionistas e afirmacionistas do Espírito do Natal? Entre os que interpretam o Natal como uma deriva consumista e os que relevam a sua dimensão religiosa? Entre os que são a favor e os que são contra as prendas? Entre aqueles que desejam que ele passe devagarinho, e que dure muito tempo, e aqueles que o suportam a contragosto e querem que passe depressa? Entre os que anseiam por reunir a família, e fazer disso uma festa, e aqueles que convivem com a família como se fosse uma convenção ou um protocolo a que não se pode fugir? Ou entre os que acham que o Pai Natal não existe e aqueles que vibram com a ideia dele andar por aí.
Não senhor, o Pai Natal não existe. É claro que se ele existisse os pais das crianças saíram a lucrar e o Natal deixaria de ser o momento em que eles recebem aqueles presentes caríssimos, embrulhados em papéis imensamente coloridos (e com um laçarote, luzente, a condizer) que não têm nada a ver com eles. Que os leva a concluir que quem os ama está longe de saber interpretar os seus desejos! Mesmo quando os pais passaram por uma montra e deixaram dicas sobre dicas do que seria uma verdadeira carta ao Pai Natal. Mas não, o Pai Natal não existe. Mas que moda mais profana, esta!…
Agora, é claro, se acredita que todas as personagens que fazem parte do seu coração existem, só por isso; que são, de certo modo, da família; se acha que, mesmo que nunca tenha chegado à fala com nenhuma das personagens da sua imaginação, guarda para com todas elas uma gratidão sem fim, por tudo o que lhe deram; se isso lhe trouxe as pessoas que ama mais para o pé de si e o sorriso delas parecia, de todas essas vezes, uma estrela de Natal; e se, independentemente das modernices, entende as histórias sobre o Pai Natal como a oportunidade de devolver as crianças à magia com que se constroem os milagres, use e abuse de Pai Natal! Dê-lhes a entender que o amor tem sempre esta capacidade de nos colocar juntinho uns dos outros, à boleia duma historieta que seja verdade só mesmo para nós. E que essas personagens das nossas histórias são como barquinhos ou aviões de papel com que se passeia pela imaginação – e com se sonha! – olhando o céu. Há lá coisa mais bonita que nos junte a todos?… E não é que é Natal de todas as vezes em que nos embrulhamos, assim, nessas histórias, e descobrimos que sempre que sonhamos acordados na companhia de quem amamos somos todos “O Menino Jesus”?… E que, nessas alturas, não um há um Herodes que seja que nos afaste dos milagres?… Vá lá: procure com quem possa sonhar. Não feche os olhos; porque senão a magia não acontece! (Sonhar acordado a dois faz-se de olhos nos olhos!) Co-mova-se! E Feliz Natal!