Esta semana foi dramática para a democracia norte-americana. Talvez mais ainda do que a anterior. É certo que nada é mais grave, pelo menos na aparência, do que a invasão do Capitólio, o coração simbólico da democracia. Mas as reações que se seguiram – as posições do Congresso e o encerramento das contas de Donald Trump nas redes sociais – podem ter um impacto mais duradouro do que o ato criminoso que as desencadeou. Senão veja-se.

Logo no início da semana, Nancy Pelosi anunciou que iria escrever a Mike Pence para que ele acionasse a 25ª Emenda, que daria o presidente Donald Trump como inapto para exercer o cargo. Como seria de esperar, o vice-presidente não concedeu e a Câmara dos Representantes votou um novo impeachment, desta vez por “incitamento à insurreição”.

É verdade que Donald Trump cometeu um conjunto de atropelos ao Estado de Direito, especialmente desde que perdeu as eleições, sendo o mais grave – mas longe de ser o único – aquele de que foi acusado. Nada disso está em questão. Trump provou ser um antidemocrata. E as instituições democráticas têm toda a legitimidade para punir os que tentam enfraquecê-las ou desvirtuá-las. Mas para isso servem essencialmente os tribunais, que têm provado, não só ao longo da história como nestes últimos meses, uma isenção quase exemplar. Há matéria de delito? Então que esse delito seja tratado nas instâncias próprias.

Mas porque não o Congresso? Porque as ações têm consequências, especialmente num cenário como o atual nos Estados Unidos, o da polarização extrema. E parece-me que castigar o presidente cessante não é desmerecido, mas é muito perigoso. Trump perde o poder daqui a cinco dias. Além disso, e mesmo que já seja o novo Senado (a doutrina divide-se quanto a esta possibilidade) a julgar o ex-presidente, é difícil, para dizer o mínimo, encontrar os 17 senadores republicanos necessários para os 2/3 de maioria necessária à condenação. Especialmente, tendo em conta que apenas 10 republicanos se juntaram aos democratas na aprovação da nova destituição na Câmara dos Representantes. Há uma grande probabilidade de ser um exercício político inútil e o objetivo de proibir Trump de concorrer a novas eleições saia completamente gorado.

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É perigoso, porque Trump é um líder carismático. Segundo Max Weber, os líderes carismáticos não vão buscar a sua legitimidade às instituições, mas à sua mensagem, que até pode ser imprecisa ou fraudulenta, mas é aquela que as pessoas querem ouvir e à qual se agarram com unhas e dentes para terem esperança num futuro melhor. Os líderes carismáticos também têm a característica de serem seguidos cegamente por quantos acreditam neles, independentemente do que os poderes legais (vistos por si como ilegítimos) possam vir a dizer ou determinar.

Como sugerimos na semana passada, há um conjunto de elites republicanas e de eleitores americanos que está disposto a fazer o “trumpismo”, que já se tornou numa ideologia nativista-nacionalista, avançar. Não me parece que sejam assim tão poucos – ao contrário do que se foi dizendo ao longo dos últimos meses. Ora, um ataque institucional a Trump, tão poucos dias antes de ele ter de ceder o poder, só pode ser visto por estes militantes como uma forma de martírio do seu líder. Humilhar Trump significa humilhá-los a eles, o que tenderá a trazer consequências negativas, como mais violência e o aumento da militância. Nenhum destes cenários é desejável, tendo em conta os problemas americanos.

Entretanto, as redes sociais de Donald Trump foram encerradas. Pode haver bondade na decisão. Sabendo-se que o atual presidente falou em direto para a multidão que pouco depois invadiu o Capitólio. Incitou à violência e disse vezes sem conta que havia fraude eleitoral, quando todos sabemos que o escrutínio foi validado pelos tribunais – caso houvesse dúvidas. Mas Angela Merkel e Emmanuel Macron têm razão quando criticam este ato. A liberdade de expressão é um bem precioso e, para se manter, tem de ser exercido por todos, mesmo aqueles que expressam ideias que desprezamos e combatemos.

Todos estes episódios mostram que a liberdade e a democracia são difíceis de manter. Mas não é proibindo e censurando que se chega a algum lado. Pelo contrário. Em sociedades como as nossas, em que o politicamente correto se tornou mais ou menos dominante, cada proibição torna-nos a todos (e não só o visado) menos livres.

Mas só Joe Biden parece ter percebido isso. Tem apelado vezes sem conta à união e pedido que deixem assuntos da justiça aos tribunais. Percebeu o preço a pagar por manobras desajeitadas. Julgo que alguns democratas terão genuína vontade de mostrar ao país que não se brinca com as instituições. Daí o impeachment. Mas a tribalização que se vive diz-me, também, que parte deles está a reagir emocionalmente, por vingança. E ninguém ganha quando a regulação das redes sociais é arbitrária e o julgamento pertence a uma empresa privada que está mais preocupada com a sua imagem do que com as consequências dos seus atos.

Em política, quase sempre, não se pode ter tudo. Não se pode ter um Trump humilhado e trumpistas tranquilos. Não se pode ter liberdade de expressão para uns e não para outros. Como já foi dito acima, os democratas faziam bem melhor em deixar os tribunais fazer o seu trabalho do que precipitarem-se numa questão que só lhes vai dificultar a vida. Mas é assim quando as emoções e outros valores menos importantes falam mais alto do que a racionalidade em política.