Aviso desde já os meus leitores que não sou jurista, não estou interessado em discutir leis e acho que esta é a pior altura para falarmos dos temas – para mim quase bizantinos – que têm ocupado magistrados, advogados e outros doutos tudólugos por estes dias. E faço este aviso porque acho que não é preciso ser jurista, nem especialmente perspicaz, para perceber uma coisa elementar, a saber: a maioria dos figurões que estava acusado na “Operação Marquês” movimentou milhões de euros usando métodos ínvios e ilegais, isso permitiu financiar o estilo de vida escandalosamente luxuoso de um ex-primeiro-ministro, pelo meio realizaram-se negócios em que o país perdeu milhares de milhões de euros, e apesar de toda a evidência reunida sobre essas actividades um juiz pôs-se à procura de tudo o que pudesse servir para salvar essa gente do mínimo dos mínimos, que era terem de responder em tribunal.

E não, não é verdade que esse juiz tenha “arrasado” a acusação do Ministério Público, como tantos apressadamente sentenciaram. O que esse juiz fez foi outra coisa: foi insultar a inteligência e a lógica e tomar-nos a todos por parvos, ignorantes e, porventura, marcianos que não vivemos no mesmo país que José Sócrates atirou para uma das maiores crises de sempre. E fê-lo sem pudor, tomando todas as testemunhas de defesa como gente credível – apesar da maioria dos nomes que foi citando serem cúmplices desse ex-primeiro-ministro no louco desvario que levou o país para a bancarrota –, ao mesmo tempo que desvalorizava todos os testemunhos incriminatórios.

Querem um bom exemplo do que afirmo? Já se sabe como é difícil provar um crime de corrupção: nem o corruptor, nem o corrompido têm interesse em denunciá-lo. Por isso, quando alguém admite que é intermediário numa operação destas, passa a ser uma testemunha preciosa. Havia um testemunho desses no processo: o de Hélder Bataglia, que admitiria ter sido intermediário numa transação de 12 milhões de euros que circularam do universo de Ricardo Salgado para as contas Santos Silva/José Sócrates. O juiz Ivo Rosa reconhece que a operação ocorreu – não tinha outro remédio, a papelada está todo no processo –, admite que as explicações da defesa não são consistentes, mas opta por não dar credibilidade ao testemunho de Bataglia. Ou seja, desqualifica o seu depoimento para poder salvar Salgado e Sócrates.

Querem outro exemplo? Na avaliação da prova sobre a interferência ou não de Sócrates na OPA da Soneacom sobre a PT, Ivo Rosa optou por desconsiderar o depoimento do líder da Sonaecom, Paulo Azevedo, para valorizar em contrapartida os testemunhos de subordinados ou amigos de José Sócrates, como o socialista Carlos Santos Ferreira, que presidia à Caixa Geral de Depósitos e depois seria colocado à frente do BCP, e de Armando Vara. Gente séria, como todos sabemos.

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O mesmo faria com o depoimento de Luís Campos e Cunha, que bastaria consultar os jornais da época para saber que se demitiu do governo de Sócrates por causa das pressões para nomear Vara para a CGD, mas de que Ivo Rosa não quis saber.

Aliás conforme íamos ouvindo citar as testemunhas a que o juiz dava credibilidade íamos revivendo um filme de horror – quem não se lembra de Mário Lino, de Paulo Campos, de Carlos Costa Pina, de Guilherme Dray, de Celeste Cardona, etc., etc. – e verificando como ele nos queria fazer crer numa ficção, ou melhor, num conto de fadas: a de que o primeiro-ministro Sócrates não dava orientações aos seus ministros, nem aos seus banqueiros, ou que só contactava com os líderes estrangeiros (Lula da Silva, Chávez…) durante as visitas oficiais. Que tudo era angelical, que o país não era aquele que todos conhecemos e em que todos vivemos.

Desde o primeiro momento – isto é, desde que fez um discurso de abertura pomposo e arrogante – que se percebeu aquilo que este juiz andou a fazer nos últimos dois anos: andou a tratar de encontrar todas as formas possíveis de salvar os dois figurões que mandaram em Portugal nos anos mais sombrios da nossa democracia — o duopólio Sócrates/Salgado — sem olhar a meios, sem cuidar da coerência, sem preocupação de escrúpulos.

Basicamente o que Ivo Rosa foi fazendo, e disso nos deu conta ao longo de quase quatro horas, é, e vou citar uma boa síntese que li por estas horas, que “se existe acusação esta não é válida, se é válida não há provas, se existem provas, foram obtidas de forma imprópria, se não foram obtidas de forma imprópria não são suficientes, se são suficientes o crime já prescreveu”.

A única coisa que aquela triste figura não conseguiu arredar do meio da sala foi o elefante que lá estava, ou seja, os milhões que tinham circulado para o bolso de José Sócrates, os pagamentos em dinheiro, o apartamento de Paris, os contratos para lhe escreverem o seu famoso livrinho, a vida de nababo e as ordens secas dados “ao amigo” para lhe mandar mais envelopes com notas. Ficámos a saber que em três anos e qualquer coisa o ex-primeiro-ministro derreteu 1.727.398,52 euros desse seu “amigo” – o que dá uns modestos 43 mil euros por mês – e que isso, hélas, Ivo Rosa achou estranho.

Construiu então a partir daí uma nova acusação, segundo a qual José Sócrates, o homem que nas escutas dá ordens e destrata Carlos Santos Silva, seria afinal um pau mandado do empresário, por ele tendo sido corrompido, sucumbindo por “venda da disponibilidade” e “compra da personalidade”. Mas se se preparavam para aplaudir este momento de lucidez, guardem as mãos nos bolsos: logo de seguida ficámos a saber que mesmo pronunciando para julgamento o antigo primeiro-ministro por crimes de branqueamento de capitais e falsificação de documentos (o que junto ainda pode valer 12 anos de cadeia), o nosso juiz conseguiu arranjar forma de não o acusar por fraude fiscal. Autoincriminar-se-ia se declarasse os dinheiros que estava a receber do “amigo”, argumentou. Fantástico argumento. Ficámos a saber que praticar um crime nos iliba de outro crime, mesmo quando está em causa a Autoridade Tributária.

Volto ao princípio: não sou jurista, nem quero ser, mas o que se passou no Campus da Justiça na sexta-feira dia 9 de Abril de 2021 foi um insulto ao povo português e um rude golpe nas nossas instituições. E por duas razões.

Primeiro, porque aquilo que hoje milhões de portugueses estão a pensar é como é possível que o sistema da Justiça albergue no seu interior uma víbora capaz de provocar este dano, para mais sabendo-se que tal figura perdeu 17 recursos nos últimos quatro anos num tribunal superior. O que milhões de portugueses estão a pensar é que nunca em Portugal os corruptos serão apanhados e condenados, mesmo quando entra pelos olhos dentro do mais ignaro que não há explicação para o enriquecimento súbito de certos poderosos.

Segundo, porque os portugueses que assim pensam terão razão se a “doutrina Ivo Rosa” fizer caminho, se para provar a corrupção passar a ser necessário apanhar o corruptor a entregar o dinheiro ao corrompido, se nenhuma prova indirecta for admitida, se todas as desculpas dos arguidos tiverem força de palavra de honra. Pior: para já a galáxia de interesses e personalidades que gravitava em torno de Sócrates, com Salgado à cabeça (o DDT, “dono disto tudo”, lembram-se?), escaparam, apesar do rasto dos milhões que ficaram nas contas da Suíça e nos offshores – o que significa que escapou o coração do sistema que ele montou. O cutelo da Justiça cai apenas sobre Carlos Santos Silva, no meio de tudo isto um pobre diabo, e o desgraçado do motorista Pena, por ter uma arma proibida.

Não, isto não é a Justiça a funcionar, isto não é sequer um erro da Justiça. Isto é mesmo o que parece: um insulto aos portugueses.