É bom saber ao que vêm. É bom conhecermos os custos de uma reestruturação substancial da dívida. É bom sabermos que tudo tem um preço – assim, ao menos, já não é possível falar de soluções milagrosas.
Falo, naturalmente, da proposta de quatro economistas – Francisco Louçã, ex-dirigente do Bloco de Esquerda, Pedro Nuno Santos, deputado do PS e grande apoiante de António Costa, o tal que disse estar-se “a marimbar para os credores”, Ricardo Cabral, professor da Universidade da Madeira, e Eugénia Pires, uma estudante de doutoramento ligada ao RMF, um think-thank anti-capitalista e à chamada “Auditoria Cidadã à Dívida” – sobre sobre reestruturação da dívida.
À primeira vista, tratar-se-ia de um milagre. O Público, entusiasmado, chama-lhe mesmo “um guião para resolver o problema da dívida”. Pudera: a dívida seria cortada para metade, e sem “haircut”, isto é, sem redução do montante em dívida. Tudo se conseguiria apenas por via da redução dos juros e do dilatamento dos prazos de pagamento.
É preciso ler as letras pequeninas – no caso do Público, o segundo artigo dedicado ao tema – para perceber como se processaria o “milagre”. E, naturalmente, quem pagaria a factura. Mas vejamos, em linhas gerais, o que sucederia.
Primeiro, o Estado declararia que só pagaria a dívida daqui por umas décadas, entre 2045 e 2054; depois, que baixaria os juros para 1%; por fim, em 2015 nem os juros pagaria. Ninguém escaparia a estas medidas, com excepção dos fundos de pensões. Isto é, seriam abrangidos todos os pequenos investidores que tivessem comprado, por exemplo, certificados de aforro.
A consequência desta medida seria, no plano interno, dramática para a banca, que titula grande parte da nossa dívida pública. Para evitar o colapso de todo o sistema financeiro, estes economistas têm uma proposta simples: nos bancos, protegiam-se os depósitos até 100 mil euros (uma regra da União Europeia); tudo o resto literalmente esta posto em causa. Por exemplo: “o valor nominal das acções do banco seria reduzido a zero” – cito o Público –, o que significa que os actuais accionistas, grandes ou pequenos, seriam na prática expropriados sem indemnização. Quanto aos credores dos bancos, estes “perderiam a totalidade dos seus títulos de dívida”. Os depositantes com mais de 100 mil euros – depositantes que, no caso português, são muito diferentes dos depositantes da banca cipriota – perderiam também um terço dos seus depósitos.
Juro que li duas vezes o texto do Público, peguei depois no relatório propriamente dito, esfreguei os olhos para ver se estava bem acordado, e concluí que sim, era mesmo isso que estava lá: nacionalizar toda a banca (sem nunca usar esse nome) e declarar bancarrota (no caso de todos os titulares de créditos sobre a banca), e acreditar que tudo isto se faz sem instabilidade e sem ruptura no financiamento do nosso Estado e da nossa economia. E sem provocar uma fuga de capitais de dimensões homéricas.
Mas vejamos o que nos sucederia com uma “reestruturação” da dívida neste moldes, deixando de lado “pormenores” como a liquidação das pequenas poupanças de milhares de famílias – todas as que investiram em certificados de aforro e em bilhetes do tesouro (não é pouco: são mais de 12 mil milhões de euros), mais todas as que têm uma mão cheia de acções dos bancos portugueses (sendo que o valor das restantes empresas portuguesas cotadas também seria destruído), mais ainda todas as que têm mais de 100 mil euros de poupanças nalgum banco. Ou “pormenores” como a ideia de que os actuais accionistas dos bancos portugueses os recapitalizariam depois de terem sido expropriados do valor das suas participações. Ou ainda “pormenores” como a ideia de que continuaríamos dentro do Eurosistema depois de termos declarado que mudávamos as regras de prazos e pagamentos das dívidas que existem junto desse mesmo Eurosistema.
A primeira consequência de um movimento deste género é que no minuto seguinte Portugal perderia de novo acesso aos mercados da dívida pública: ninguém empresta a quem não cumpre as regras de um empréstimo. Repare-se nisto só para tentar imaginar como quem empresta ao Estado iria reagir: se eu, pequeno aforrador, tivesse certificados de dívida pública que vencessem daqui por três ou quatro anos (e recordemos que muitos desses pequenos aforradores são pessoas idosas), se a proposta destes economistas fosse por diante só voltaria a ver o meu dinheiro algures entre 2045 e 2054 e, até lá, pagar-me-iam um juro de apenas 1%. Acham que depois disso eu voltaria a confiar no Estado português e a emprestar-lhe dinheiro?
No caso do Estado e das Administrações Públicas, a impossibilidade de aceder aos mercados significaria que, de um dia para o outro, o défice público teria de ser reduzido a zero – ou então teríamos de chamar de novo a troika, se é que alguma troika aceitaria vir. Escusado será dizer que os “cortes” seriam muito mais violentos do que tudo o que conhecemos até ao momento. Talvez começassem mesmo por deixar salários e pensões por pagar.
No sector privado, e na banca em particular, uma operação de denúncia das dívidas existentes deixar-nos-ia também sem acesso a financiamentos externos, talvez também a financiamentos internos. Seria a secura total, ficando a banca ainda mais dependente do Eurosistema do que hoje está. Restaria saber se esse mesmo Eurosistema continuaria a aceitar financiar-nos.
É fácil estar-se “a marimbar para os credores” quando se tem um confortável lugar de deputado – é impossível marimbar-se para os credores quando se quer manter a economia e o Estado a funcionar, e nem um, nem outro funcionam sem crédito, sem financiamento, quer por gerarem défices correntes, quer por necessitarem de fazer investimentos.
Por isso é necessário perceber o tipo de motivações que está por detrás destas tentativas de não pagar, pelo menos em parte, as dívidas que se foram acumulando nas últimas décadas. A primeira de todas é a recusa em aceitar a necessidade de profundas reformas capazes de adaptar o país – a sua economia, o seu Estado, os seus compromissos com despesas sociais crescentes – à economia do século XXI. O segundo é a ideia de que há sempre dinheiro nalgum lugar para pagar políticas públicas cada vez mais exigentes e sorvedouras de recursos.
Durante muitas décadas os socialistas de todas as latitudes acharam que não havia limites para as suas políticas redistributivas enquanto fosse possível cobrar mais e mais impostos. Quando o dinheiro dos outros acabou, passaram a fazer dívida, acreditando no milagre do crescimento futuro. Quando o crescimento não veio e as dívidas se tornaram incomportáveis, passaram a falar em não pagar as dívidas. É nessa fase que estamos. Nunca lhes ocorreu que, pura e simplesmente, era necessário mudar de vida. Qualquer mudança de vida foi sempre apresentada como uma recusa da própria democracia.
O ponto de um debate construtivo – e não de mais uma fuga em frente, sem olhar bem às consequências, como sucederia no caso das propostas deste “relatório” – terá sempre de ser outro. É possível pensar em processos de renegociação da dívida – que eu mesmo já defendi –, mas isso terá sempre de implicar três condições. A primeira, e mais importante, é que se faça o trabalho de casa em cada país, um trabalho de casa feito de reformas que Portugal, contra ventos e marés, lá tem vindo a fazer, como ainda agora acaba de demonstrar o mais recente relatório da OCDE, mas que está longe de concluir. A segunda é que uma renegociação é uma negociação, logo deve ser discreta – como foi a que, apesar de tudo, foi feita em 2013 ainda por Vítor Gaspar – e não pode ser um processo virtualmente unilateral, como parece resultar do que se conhece desta proposta. Por fim é essencial que tanto o Estado como o sector privado possam continuar a aceder ao mercado da dívida, algo só possível se houver confiança, e confiança é o contrário de reestruturações que, no fundo, são incumprimentos.
PS. Pedro Nuno Santos, um dos subscritores deste relatório, é também um destacado apoiante de António Costa. Era bom por isso que Costa dissesse o que pensa das propostas do seu fogoso acólito.
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