É cíclico. De vez em quando dão uns furores patrióticos a alguns dos nossos principais agentes económicos e estes começam a manifestar-se contra a “invasão” estrangeira. Umas vezes fazem-no em nome dos famosos “centros de decisão nacional”, outras sobem o tom de voz como condestáveis antes de uma eventual reedição de Aljubarrota. Estamos de novo num momento desses, e com patrocínio ao mais alto nível, isto é, na Presidência da República e, também, à mesa do Conselho de Ministros.

Devo dizer que estes “calores” me espantam – sempre espantaram. A começar pelo que me parece mais óbvio: por que razão existe tanta excitação com Espanha e tanta tolerância com Angola? Em Espanha sabe-se de onde vem o dinheiro, conhecem-se as intenções dos investidores, o sistema bancário está sujeito ao mesmo tipo de regras de supervisão europeias. De Angola só se sabe que… não se sabe nada, a não ser que os “investidores” se sentam sempre à nossa mesa com uma ameaça implícita: ou mostramos compreensão, ou então as coisas correrão mal aos portugueses (e aos investimentos portugueses) na nossa antiga colónia.

Não posso por isso deixar de ficar estupefacto com aquilo que, este sábado, vinha contado no Expresso. E não apenas por, aparentemente, o primeiro-ministro andar a reunir com Isabel dos Santos (cuja fortuna, como se sabe, não deve nada ao facto de ser filha de José Eduardo dos Santos…) para negociar com ela os seus investimentos no sistema financeiro português. O que me surge como especialmente inquietante é o “plano” que parece mover tanto Marcelo Rebelo de Sousa como António Costa, e que posso resumir assim: para evitar que os bancos espanhóis tenham mais peso no nosso sistema financeiros, vamos favorecer os angolanos. Os espanhóis já têm o Santander e vão ficar maioritários no BPI; então vamos ajudar os angolanos a reforçarem a sua posição no BCP e, idealmente, permitir-lhe que fiquem com o Novo Banco. Mais espanhóis é que não: vade retro, castelhanos!

Nada disto faz sentido, tudo isto é muito perigoso.

Comecemos pela “invasão” espanhola. Até ao momento, a sua presença em Portugal traduz-se antes do mais no Santander (que a família Botin conseguiu depois de duras batalhas com os condestáveis de outros tempos e outros governos, pois é bom recordar as sagas da privatização do Totta e, depois, da venda do grupo financeiro que pertencia a Champalimaud) e numa participação no BPI. O que distingue esses dois bancos de todos os outros grandes bancos portugueses (omito os pequenos, pois esses pesam pouco)? São os únicos dois bancos que ou nunca tiveram problemas, ou já os superaram. Conhecemos o cataclismo do antigo BES, assistimos às sagas do BCP e não podemos nem devemos esquecer que o banco público, o “nosso”, o “do povo”, a Caixa Geral de Depósitos, passa por sérias dificuldades (muito sérias mesmo).

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Ou seja: quem fez mal, imensamente mal à economia portuguesa e quem precisou de muito, mas mesmo de muito dinheiro dos contribuintes, foram os bancos portugueses, nalguns casos com graves complicações importadas de Angola. Porque se receia então a “espanholização” da banca portuguesa? E se olha com simpatia para Angola?

Conheço a resposta: os centros de decisão sairão de Portugal, esses bancos vão financiar as empresas espanholas que concorrem com as portuguesas, os nossos empresários vão deixar de ter uma relação de proximidade com os seus banqueiros. Tretas. Qualquer banco, sobretudo bancos bem geridos como são aqueles de que estamos a falar, querem é bons negócios, não estão preocupados com o “patriotismo” dos seus empréstimos. Para eles, mais do que para ninguém, o dinheiro não tem nacionalidade.

O problema é outro: é que com esses bancos haverá um rigor na concessão de empréstimos a que muitos dos nossos empresários, incluindo os médios e pequenos, não estão habituados. O nosso mal, o que mais arruinou e endividou a nossa economia, foram créditos de favor, nalguns casos incestuosos (como sucedeu no BCP em tantas ocasiões), noutros destinados a criar centros de poder (o “dono disto tudo” não alcançou esse estatuto passivamente), noutros ainda sem o cuidado de avaliar a racionalidade dos investimentos.

É verdade, já me deram exemplos: os “investidores” que até há dois ou três meses contavam com a benevolência dos gestores dos balcões do BANIF, por exemplo, estão agora, com esse banco integrado no Santander, a encontrar exigências que antes desconheciam. Mas isso, para mim, são boas notícias, não são as desgraças anunciadas. É que foram muitas benevolências dessas, tomadas ao balcão de um banco ou subindo ao mais alto nível da sua hierarquia, que geraram os milhares de milhões de imparidades que colocaram o sistema financeiro (e o país) entre a espada e a parede.

Mas há mais, e de novo fico boquiaberto. Há também os chineses, para mais empresas chinesas por vezes directamente dependentes do governo de Pequim, que tomaram as posições que tomaram no sector energético ou no sector segurador sem o mesmo tipo de sobressalto patriótico. Aí quase só protestou quem era contra as privatizações, mas a motivação era sobretudo ideológica.

Tal como também houve menos — neste caso menos indignação mas muito mais silêncio, quando estivemos à beira de ter uma comunicação social dominada por angolanos (que de resto ainda aí estão bem presentes), gente que, como se sabe, tem em elevada consideração os valores da liberdade de informação e do pluralismo.

Dir-se-á: mas não deveria o sistema financeiro português ficar em mãos portuguesas? Não duvido que era preferível. Mas, para isso suceder, era necessário que houvesse capital no nosso país. Não há, o que há são dívidas. Sendo que as dívidas das empresas e das famílias ainda são maiores do que as dívidas do Estado.

Valerá a pena procurar perceber porque não há hoje, como por regra não houve no passado, capital disponível em Portugal. Mas essa discussão não só não corrige erros do passado, como não altera a situação em que estamos, de que o exemplo mais gritante é nenhum grupo económico português ter a menor das possibilidades de tentar comprar o Novo Banco. Para o vender estamos dependentes do interesse de outros, chineses, espanhóis ou americanos. Nem sequer parece haver mais europeus interessados…

Neste quadro é ainda mais perigoso deixar que o primeiro-ministro ou o Presidente da República actuem nos bastidores. Duplamente perigoso.

Primeiro, porque as suas motivações nunca serão a racionalidade económica dos negócios, antes considerações políticas. A última vez que um primeiro-ministro interveio num grande negócio privado, obrigando a PT a entrar na brasileira Oi, criou as condições para a destruição da mais poderosa das empresas portuguesas. Querem correr de novo esse risco?

Depois, porque a obsessão anti-espanhola e o namoro angolano me cheiram a mofo. Cheiram-me ao país “pluricontinental” e de costas voltadas para a Europa e para Espanha que eu conheci na minha juventude e cujas virtudes estavam plasmadas nos livros da escola primária do antigamente. Não me cheiram ao país aberto ao exterior e reconciliado com a Europa em que julgo viver. Por enquanto, pelo menos.

A única preocupação que um governo e um Presidente deviam ter era a de garantir que o nosso mercado financeiro é bem regulado, que há concorrência entre os diferentes operadores, que não ficamos demasiado expostos ao país A ou ao país B e que ninguém alcança uma posição de domínio que desvirtue o bom funcionamento de uma economia aberta à inovação e ao risco, sem “donos disto tudo”. Ou donas, como parece poder acontecer.