As tardes de aldeia, tão distantes e ao mesmo tempo tão presentes na memória, ecoam como um convite a revisitar as raízes. Tenho saudades do povoamento perdido na raia beirã. A terra é Salvaterra do Extremo, desenhando a fronteira com a Extremadura espanhola. Passava grande parte do verão naquele pedaço de céu esquecido, dentro do já recôndito retângulo “à beira-mar plantado”. O meu avô só era feliz ali. Capitão do Exército reformado, encontrava na paisagem da meseta ibérica um refúgio do rodopio insano dos subúrbios da Grande Lisboa.
A minha avó, natural de uma terra vizinha, Rosmaninhal, tinha uma relação diferente com as suas origens, não partilhando o mesmo amor por elas. Sempre me pareceu que sentia um certo ciúme da “terrinha”, quase como se competisse com ela pelo afeto do senhor Alexandre. Essa falta de ligação era tão evidente que, ao se falar de Salvaterra na sua presença, era certo ouvir um suspiro ou um discreto revirar de olhos.
Lembro-me de estar sentado na sela do cavalo do Nando, cigano, e de como o galopar quase me cortava a respiração enquanto rasgávamos o ar à velocidade da luz. Talvez seja esse regresso à ancestralidade que tanto procuramos. Numa sociedade cada vez mais acelerada e monótona, onde as experiências que nos ligam à nossa essência primária são relegadas para segundo plano — quase como se fossem uma infantilidade, uma inutilidade qualquer.
O meu avô adorava as suas petiscadas rurais. Uma das suas especialidades era a mítica sopa de poejo com peixe do rio. Confesso que a iguaria nunca me atraiu. A dose generosa de poejo, algo exagerada na minha opinião, deixava-lhe um cheiro peculiar, que cristalizava o meu olfato durante uma semana. Contudo, havia uma certa fama em torno daquele prato entre os anciãos da aldeia.
O vizinho do lado era o senhor Alexandre, um pastor estoico que almoçava todos os dias bife de vaca com ovo a cavalo. Fazia questão de repetir-me isso sempre que me apanhava a brincar com carrinhos no banco de pedra encostado à casa da frente. Um dia, levou-me a ver as suas cabras. Conduziu-me pela mão, explicando-me como alimentar aqueles seres que pareciam nuvens em forma de animal e que soltavam sons quase como gargalhadas. O seu balir parecia um riso genuíno, ecoando pelo campo com uma alegria contagiante.
Afinal, ao olharmos para as nossas cidades de betão frio e cinzento, dentro do peito cresce a necessidade de voltar àquela aldeia. Sentir mais uma vez aquele cheiro familiar e pisar a calçada quente do verão. Onde resta, então, a nossa ancestralidade? É nas memórias e nas tradições que encontramos as raízes que nos definem.