O caso é simples. Um dos juízes do Tribunal Constitucional terminou o seu mandato e tornou-se necessário indicar um novo nome para o substituir. O PSD propôs Maria João Vaz Tomé, juiz conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, nome perfeitamente desconhecido da maioria dos portugueses, presumo. O Parlamento, através da Comissão de Assuntos Constitucionais, procedeu à devida audição da candidata, tendo sido questionada pelos deputados acerca de diversos assuntos, um dos quais a interrupção voluntária da gravidez.

Maria João Vaz Tomé teve, porém, o infortúnio de deixar escapar um par de evidências. Por um lado, disse acreditar que, se o prazo para a interrupção voluntária da gravidez for alargado das dez para as doze semanas, o assunto iria parar ao Tribunal Constitucional. Por outro lado, afirmou que existe vida intra-uterina e que, juridicamente, no caso do aborto, a protecção dessa vida intra-uterina entra em conflito com o direito da mulher a dispor do seu corpo e à sua autodeterminação.

Não decorre uma posição conservadora ou progressista, mais à direita ou mais à esquerda, das palavras da candidata ao Constitucional. É óbvio que, perante uma alteração legislativa sobre um assunto sobre o qual se fizeram dois referendos, essa alteração provavelmente será suscitada junto do Tribunal Constitucional por alguém com legitimidade para o efeito; é evidente que a legislação, seja ela qual for, sobre a interrupção voluntária da gravidez estabelece um critério mediador entre dois direitos em conflito. Óbvio, não é? Não é.

O líder parlamentar do Bloco de Esquerda, um analfabetizado pela escola de Boaventura Sousa Santos, o famoso CES de Coimbra, onde, como se escreveu em relatórios, se praticavam «toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais; abraços demasiado longos e apertados», «relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido» e ainda «relações sexuais com alunas/investigadoras cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam», o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, dizia eu, ouviu Vaz Tomé e, macacos o mordessem, não perdeu tempo. No X, escreveu que para a candidata a juiz do Tribunal Constitucional o aborto é uma questão polémica e divisiva, dando por certo que voltará a ser apreciada pelo Tribunal, e rogou a todos os santinhos parlamentares a sua rejeição, em nome da «autodeterminação das mulheres».

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Inês Sousa Real, igual e espantosamente deputada, em representação da solidão urbana, toda feita de gatos e sacas de ração, não quis deixar-se ficar para trás e usou também o X para dizer que a visão de Vaz Tomé é «uma ameaça que não podemos ignorar» e que, por estar «do lado das mulheres», não votaria nela.

E mesmo gente aparentemente mais sensata como o ex-segurista-depois-costista Eurico Brilhante Dias lá acabou por deixar escapar que a candidata do PSD ao Constitucional foi chumbada «por manifesta agenda ideológica». Ora, Vaz Tomé, juiz, até podia ter uma agenda ideológica, mas não a expôs. Brilhante Dias, político, anda a fazer isso há anos e parece-me injusto não permitir o mesmo aos outros. Adiante.

Resultado: Maria João Vaz Tomé acabou chumbada, com direito a aplausos pela reprovação parlamentar. O assunto morrerá aqui. Na verdade, o assunto só não morreria se a candidata tivesse sido aprovada, e acabaria a abrir telejornais e a fazer escorrer tinta pelos folhetins da praça, face à ameaça da peste, da cólera e da criminosa treva do fascismo que aí estaria a cair sobre o país celestial em que vivemos. O assunto já morreu, em bom rigor. Mas não deixa de ser fascinante observar este pequeno pormenor da vida institucional do Estado português e ver nele todo um retrato. Por um lado, Vaz Tomé acabou rejeitada pelo Parlamento por delito de opinião quando não emitiu nenhuma, limitando-se a afirmar duas banalidades. Por outro lado, ficou claro que mesmo estas duas banalidades deixaram de o ser (o aborto deixou de ser uma situação de direitos conflituantes, não sei se repararam) por força cultural e política da esquerda, mesmo quando é, para todos os efeitos, minoritária.

É que, para rebentarmos a rir, note-se que Vaz Tomé acabou por recolher apenas 76 votos a favor, ou seja, nem mesmo a bancada parlamentar do PSD (presumindo que os dois deputados do CDS não se encontravam desprovidos de senso ou em estado de incapacidade temporária) votou nela de forma unânime. E a bancada do rebanho que André Ventura pastoreia achou por bem fazer um favor à esquerda parlamentar e reprovou-a também. E é nisto que estamos. Neste lodo em que a esquerda manda, Ventura colabora e o PSD se manifesta incapacitado, o que nos resta é o enjoo, como nas barcarolas sem homem ao leme e em mar bravio. Vomitemos, pois.