A prova de que os nossos filhos foram protegidos demais traduz-se no modo como, para muitos deles, qualquer experiência de ansiedade se transforma, rapidamente, num ataque de pânico.

A ansiedade é sempre um sinal vital. A prova que, em piloto automático, registamos, analisamos e reagimos a situações que, tomando em referência aquilo que se passa à nossa volta de estranho ou de razoavelmente preocupante, e considerando tudo o que sabemos, nos encaminha para um estado de alerta que nos prepara para atacar ou para fugir. Para chegarmos à ansiedade reagimos produzindo emoções. Reagimos com raiva. E reagimos com medo. Este pacote de recursos habilita-nos para que, num primeiro momento, façamos frente a uma novidade ou a um episódico súbito que traga alguma turbulência àquilo que sabíamos até aí ou a um estado de equilíbrio mais ou menos instalado que exista em nós. Depois dessa reacção ansiosa, duma forma menos rápida, mais pensada e, naturalmente, mais inteligente, seremos capazes de pegar nessa cascata de experiências emocionais e de oportunidades cognitivas que, entretanto, surgiram, misturando o novo com o já sabido e pensando melhor sobre todas as coisas. De forma mais esclarecida. E vendo mais longe.

Sejam as emoções que o sistema nervoso nos traz, sejam o medo ou a raiva, o destino do que acontece cá dentro passa por sentir, imaginar, pensar, perceber, falar e brincar com tudo o que a experiência nos traz.

Seja como for, primeiro vivemos a ansiedade. E, depois, pensamos. (Sendo que a ansiedade não deixa de ser, ela mesma, uma forma de pensar. Mais rápida. Mais fulgurante. Mas mais rudimentar.) Já fugir da ansiedade significa ignorar um recurso que traz expedientes de crescimento, tentando saltar sobre ela, procurando um atalho, que não ajuda a pensar nem contribui para crescer. Na verdade, à medida que vamos convivendo com episódios um bocadinho ansiosos, vamo-nos tornando aptos para conviver com eles. A ponto desse sinal de ansiedade não surgir sempre que nos experimentamos em situações que nos são familiares ou que ficam na sua vizinhança.

É claro que pensar é monitorizar, em tempo real, a forma como o nosso sistema nervoso, através daquilo que nos faz sentir e dá a conhecer – tudo validado pelos sinais que o nosso corpo nos oferece – analisa, discorre e actua sobre a realidade à sua volta.

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Por isso mesmo, é quase impossível pensar devagar e crescer depressa. Mas pensar devagar e crescer depressa é aquilo que “exigimos” aos nossos filhos! Quanto mais inteligentes mais associam quantidades mais significativas de informação mas, nem por isso são mais “supersónicos” a fazê-lo. Pensar – no sentido de reflectir, de comparar, de sintetizar ou de perspectivar e de projectar – exige tempo, intimismo e silêncio. Pensar até ao fundo exige vagar. Mas nós alimentamos a ilusão que viver depressa e crescer antes do tempo  os torna mais astutos e mais capazes. O que não é verdade! Quando falamos dos perigos da inteligência artificial deveríamos colocar este à cabeça de todos: pensar devagar e crescer depressa é uma tolice!

A questão que se pode colocar é se esta competência para estarmos sempre a gerar e a gerir informação (e, portanto, sempre a pensar) será controle. De certa forma, sim. Se bem que aquilo a que chamamos, habitualmente, controle não seja bem isso. Mas, antes, a forma como tentamos reprimir ou censurar aquilo que sentimos com a racionalidade, isolando emoções, raiva, reacções corporais de alerta e, claro, o medo, da capacidade de pensar. Tentando domesticar sinais vitais. E reagindo, seja em que circunstâncias for, de cabeça fria. Mas quanto mais nos controlamos mais ansiosos nos tornamos.

Ninguém pensa de cabeça fria! Aliás, pensar de cabeça fria não é pensar. Mas reagir duma forma um bocadinho paralisante e aterrorizada perante quaisquer aspectos que, como tudo o que se passa em nós, precisam de ser pensados. É claro que não há quem viva de forma aterrorizada e criativa e clarividente ao mesmo tempo. Ao contrário da cabeça fria, o “topo de gama” que se coloca ao nosso dispor é pensar de forma quente e, ao mesmo tempo, inteligente. Daí que o “clímax” deste formato de pensamento seja a intuição . Mas, como se compreende, nunca se pode ser intuitivo e pensar de cabeça fria, simultaneamente.

Mas nós educamos os nossos filhos para o controle. “Controla-te!” é o condimento mais amigo do pânico que pode existir. “Controla-te!” sugere “domestica-te!”. “Censura tudo aquilo que não compreendes”. “Ignora tudo o que o teu sistema nervoso e o teu corpo te dizem”. “Arma-te em estúpido…”, em resumo. Na verdade, sem nos darmos conta, sugerimos, um ror de vezes, que ser-se estúpido é a melhor forma, de sendo frios, nos tornamos inteligentes. Inacreditável, não é?…

É claro que reagir de cabeça quente é tomado como impetuoso, impulsivo e perigoso porque, se estivermos, na maior parte das vezes, debaixo dum controle que mais parece um colete de forças, tudo o que descompense ou desequilibre esse “controle” corre o risco de se manifestar de forma eruptiva. Semelhante a um vómito. Fugindo para fora de nós, fora de controle. Afinal, a cabeça quente só se torna perigosa quando fazemos por que impere a cabeça fria.

É por causa deste imenso controle que exercemos sobre eles (e que os convidamos a ter sobre o que sentem) que os adolescentes tão depressa vão ficando cada vez mais inseguros diante de si próprios (diminuindo a sua auto-estima) como acabam por ser “muito intensos” mas com imensos episódios duma raiva que os torna “impossíveis”. Educa-mo-los a tapar a cabeça e a destapar os pés, e vice versa. O resultado não é o melhor.

Já quando se lida, regularmente, com as emoções que surgem e borbulham, pensar de cabeça quente representa – sempre! – pensar melhor. As equipas de alta competição, por exemplo, só parecem reagir de cabeça fria nos momentos mais desafiantes porque, de tanto serem expostas a essas experiências, vão aprendendo a reagir com elas. Fazendo com que aquilo que, de início, era stress se vá transformando num recurso. Daí que haja atletas que, fazendo uso dessa aprendizagem, brilhem mais quanto maior é o desafio a que se expõem.

Na génese, a ansiedade é um recurso de uma enorme utilidade. Mas fomos todos educados para a reprimir. Criando-se a ideia que as pessoas fortes e corajosas não se deixam toldar por ela. Talvez porque a emoção central na ansiedade seja o medo. Ao contrário das pessoas fortes, que não fogem do medo, o “não tenhas medo, porque eu estou aqui” foi dando lugar a uma versão minimalista: “não tenhas medo…”. Que, aos pouquinhos, faz com que se passe a ter medo do medo. Com que se foge dele. Sem que se repare que essa é a forma premium de se ficar preso a ele. Vendo bem, o pânico é o medo de ter medo. Como se, idealmente, a ansiedade se controlasse reduzindo-se a zero. À escala da temperatura do corpo, que tem a mesma função de sinal vital, não ter ansiedade significaria: “reduz a temperatura a zero”. Que, por outras palavras, quereria dizer: “quanto mais depressa morreres mais vivo te tornas”. (É inacreditável a forma como, levados ao absurdo, fomos tão mal educados para tudo o que temos cá dentro!)

É porque os fomos ensinando a reprimirem-se mais do que deviam, e porque eles brincam cada vez menos e utilizam muito pouco a agressividade na forma como jogam (a ponto de não a lapidarem e de não a tornarem urbana), e porque foram muito protegidos e muito poupados às pequenas dores do crescimento, que os nossos filhos se assustam cada vez mais quando estão ansiosos. Muito controle significa, grande parte das vezes, hiper-protecção. E, em consequência de tudo isso, maior fragilidade. Repito-me: a prova de que os nossos filhos foram protegidos demais traduz-se no modo como, para muitos deles, qualquer experiência de ansiedade se transforme, rapidamente, num ataque de pânico.

É claro que, de cada vez que se assustam muito e se dão conta que não reúnem os recursos indispensáveis para fazer frente ao medo, eles se sentem numa iminência permanente de pânico. Se, em cima disso, fomos condescendendo com que os nossos filhos se fossem tornado mais individualistas e mais egocêntricos, ou se nos têm a nós assustados porque eles estão a sofrer, é natural que o pânico que se insinua neles avive muitas exposições ao desamparo. Sendo que a depressão resulta de experiências cumulativas de desamparo. Isto é, a ansiedade que mal se digere traz consigo uma atmosfera depressígena que os fragiliza ainda mais.

Na verdade, reagir ou decidir de cabeça quente significa sermos comandados por impulsos. Mas isso não é cabeça quente. Mas cabeça a ferver. Cabeça inundada pela raiva que se acumulou. Mas o oposto – reagir ou decidir de cabeça fria ou com nervos de aço – que elege a racionalidade ou o calculismo ou a insensibilidade como aliados duma decisão  – é imaginar que aquilo que se sente é um obstáculo à clarividência com que se decide. Ter a cabeça fria e o coração quente, uma “fórmula” entretanto em voga, é tão exequível como cantar enquanto se assobia. Reprimir o que se sente enquanto se pensa “melhor”.

Não, ninguém pensa de cabeça fria. A sabedoria (que é, simplesmente, a alma humana) é temperada. Não uma cabeça a ferver. Nunca uma cabeça fria. Contra a sabedoria cresce-se “depressa”. E antes do tempo. Com a sabedoria cresce-se com tempo. Pensa-se devagar. Sente-se com a cabeça. Intui-se com o coração. E decide-se com alma, cabeça e coração.

O perigo da cabeça quente é bem a prova de que fomos educados a reprimir o que sentimos. A silenciar o que pensamos. A ignorar os gritos e os sussurros com que o corpo nos fala. E a conter a raiva que isso nos traz. Sendo assim, o problema não está na temperatura da cabeça. Mas na má educação com que a instruímos. Dando a entender que se cresce melhor e mais depressa pensando de cabeça fria. Como se fosse possível chegar ao futuro antes do tempo. Mesmo que se viva perdido do que se sente cedo demais.