Por circunstâncias fortuitas, algumas vezes fui relendo e outras lendo e comentando livros de referência sobre a identidade portuguesa (Eduardo Lourenço, 1978; e José Gil, 2004). Encerro a série com A Obsessão da Portugalidade (2017), de Onésimo Teotónio Almeida, a mais atualizada bússola para quem se perder por tais caminhos. A componente de análise linguística vale por si e justifica tratar-se de um livro de leitura obrigatória, porém o sentido da abordagem histórica e social da portugalidade não sofre alterações considerando que o tema será sempre um núcleo chave da revitalização da cultura e identidade portuguesas.

O livro revela um raro ponto de equilíbrio entre o conhecimento detalhado do muito que se escreveu sobre a portugalidade e a lusofonia e a abrangência dos que sabem sistematizar. Todavia, tais características e o facto de o autor se filiar a uma linha de continuidade iniciada por Eduardo Lourenço (1978) fazem do livro mais uma peça do estagnado meio intelectual português.

Em jeito de preâmbulo, recorro ao crítico literário António Guerreiro que considera que a atualidade resultou da absorção da cultura das elites pela cultura de massas. Ao impor a hegemonia de padrões culturais médios, aquela esvaziou o papel antes desempenhado pela crítica cultural, a aferidora da qualidade da criação intelectual. Daí que se vivam tempos de obesidade cultural porque a indústria cultural multiplicou a quantidade do que produz, porém a diversidade diminuiu. Mas não acompanho o crítico literário no detalhe de se tratar de uma consequência da afirmação da cultura de massas, uma vez que esta pode e deve integrar a crítica. O bloqueio reside, por isso, na forma como as massas têm sido intelectualmente domesticadas pelos sistemas de ensino e pela comunicação social [interpretação livre da conferência de António Guerreiro realizada na Casa da Cerca, em Almada, a 14.07.2018].

O diagnóstico do desaparecimento do espaço público do lugar da crítica especializada e contundente se necessário em áreas como a literatura, filosofia, música, cinema, teatro, pintura, dança, entre outras, retrata a estagnação do pensamento, uma vez que a vitalidade e qualidade deste situa-se nos antípodas do compadrio. E foram nobres intenções que levaram à obesidade (aproprio-me do termo de António Guerreiro) da pessoalização das relações no meio intelectual e cultural em resultado de excessos de convívios em debates, conferências, congressos, colóquios, seminários, almoços e jantares, júris académicos e de concursos, espetáculos artísticos, partilha de rubricas nos media, entre outras práticas que fazem com que quase todos do meio se relacionem entre si. A consequência é o desaparecimento do distanciamento pessoal sem o qual a crítica intelectual não sobrevive. Onésimo Teotónio Almeida é um dos aprisionados nessa teia.

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Numa dimensão moderada, ela pode ser útil e, no limite, precaver tensões sociais larvares. Porém, em sociedades estáveis que ultrapassaram o patamar elementar da sobrevivência económica mas que não se conseguem autonomizar da forte tutela do estado, o prolongamento no tempo do exagero de tais hábitos torna-se propício ao pensamento único. Nesse caso, é bem mais fácil ao campo cultural hegemónico no espaço público afastar ou esterilizar todos os outros, absorvendo sem riscos outsiders residuais. E sem campos intelectuais concorrentes, a prosperidade das sociedades fica comprometida.

Apuradamente fiel à tradição intelectual, é sintomática a forma como Onésimo Teotónio Almeida gere a noção de pensamento. Limita-a ao culto da árvore (e do quintal onde tem a sua) e ignora a floresta. A árvore corresponde a estudos do pensamento de intelectuais de referência cujo valor é indisputável (Onésimo e muitos que refere são exemplos), mas esse culto vive fechado numa bolha literata muito própria, o círculo dos que tomam o seu próprio pensamento individual como intérprete fiel do pensamento das sociedades. É a esse nível que o valor do livro se esgota. Daí a importância de se incluir a floresta. Os portugueses (como todas as identidades coletivas) podem ser caracterizados por aquilo que os intelectuais escrevem e dizem deles, mas acima de tudo os portugueses têm de ser caracterizados por aquilo que os indivíduos comuns dizem de si mesmos e da identidade coletiva de que são parte integrante. O que acontece é que os intelectuais quase não saem disto: os pobres de espírito fazem e, nós, intelectuais, pensamos; eles são o corpo e nós a mente. Não pode haver noção mais indigente de sociedade.

O respeito e a compreensão do pensamento coletivo (ou social) depende da captação e interpretação sistemáticas ao longo do tempo de discursos de senso comum – com tudo o que de subjetivo e de contraditório isso comporta –, componente nuclear de identidades coletivas como ‘portugueses’,‘povo’, ‘nacionalidade’, ‘pobres’e por aí adiante. Não ignoro os riscos de se elaborarem conhecimentos sobre as sociedades tendo como matéria-prima por excelência a subjetividade e heterogeneidade dos discursos de senso comum, mas a alternativa não podem ser utopias que se insinuam credíveis, porém o seu valor analítico é residual dadas as suas enormes fragilidades empíricas.

Para deixar um esboço dos caminhos que (ainda) não se percorreram, os que tiverem a ambição de captar com genuinidade a realidade vivida sem descartarem a subjetividade intrínseca às identidades coletivas e à condição humana, e ainda assim preservarem o rigor analítico, devem suportar o conhecimento no senso comum mantendo-se o mais próximo possível da atitude psicanalítica freudiana de incentivar os discursos dos indivíduos comuns (entrevistados) em associação livre para evitar condicionar o sentido dos mesmos. Em sentido contrário, devem distanciar-se o mais possível da maiêutica socrática, isto é, da condução do discurso dos indivíduos comuns no sentido que o mestre (entrevistador) considera o desejável. Isso porque as sociedades, tal como os indivíduos, pensam por si mesmas contra uma tradição intelectual teimosamente avessa a sair da sua bolha autocentrada e, quando o faz, mantém-se visceralmente socrática.

Como é que se podem ter certezas mínimas sobre a relação das pessoas comuns com a sua identidade coletiva e debater isso sem se ouvir e registar sistematicamente os discursos de senso comum ao longo de uma dada época? Como é que se podem ter certezas mínimas sobre o que os portugueses comuns sentiram ou deixaram de sentir sobre a ditadura ou sobre a democracia, no passado ou no presente, sem os ouvir na primeira pessoa em cada uma das épocas? Como é que os intelectuais aceitam com tanta leviandade que discursos de indivíduos (intelectuais) se confundam com sentimentos coletivos (das pessoas comuns, a essência da portugalidade ou do povo) ou que se transporte com tanta ligeireza sentimentos do tempo presente (democracia) para o passado (ditadura)? Será que os literatos nunca se apaixonaram ou acreditam mesmo que sempre amaram profundamente aquela pessoa mesmo antes de a conhecerem, tal como os povos terão supostamente sempre amado ou odiado um dado regime político ou um dado modo de vida antes de o conhecerem ou antes de o viverem inserido num contexto histórico distinto?

Não é de somenos acrescentar que, ao sintetizar o debate sobre a portugalidade, Onésimo Teotónio Almeida fornece a lista dos donos de Portugal, um número limitadíssimo de indivíduos que determinam a legitimidade do pensamento do topo à base da pirâmide social. Tal como o caso dos banqueiros e respetivas instituições bancárias, as figuras intelectuais tutelares resumem-se a Eduardo Lourenço (filosofia), Boaventura de Sousa Santos (sociologia), José Saramago (literatura), José Mattoso (história, embora neste caso a tradição gere resistência), qualquer deles referido no livro. Poder-se-ia acrescentar Sampaio da Nóvoa (ciências da educação), Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto Moura (arquitetura) ou Júlio Pomar (pintura). Pouco mais. Todos homogeneamente de esquerda que impuseram essa orientação às lógicas do estado e demais instituições intelectuais e culturais que controlam a vida social. Para além disso, a sociedade portuguesa ficou árida, desértica, silenciada, humilhada.

Depois, segue-se uma miríade de figuras intelectuais de segunda linha sem que nenhuma tivesse alguma vez ousado romper com o campo das grandes figuras tutelares. Casos de José Pacheco Pereira, José Gil (referido no livro com cuidados críticos q.b.), Fernando Rosas, Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge, Pedro Mexia, Francisco Louçã, Maria Teresa Horta, entre muitos mais. Claro que as minhas escolhas são seletivas. Contudo, será irrealista admitir que o solitário Jaime Nogueira Pinto (que demorou bem mais de uma década a legitimar-se no espaço público), o autónomo Vasco Pulido Valente e mais um ou outro conseguem contrariar a torrente.

Na base da pirâmide, além do sem-número dos decisivos pequenos agentes estratégicos dos sistemas de pensamento único (professores, jornalistas, empresários, atores, desportistas, diretores de serviço, escritores, poetas, investigadores, etc.) constate-se, por exemplo, a raridade (no passado recente) ou a inexistência (hoje) de músicos da dita cultura de massas que rompem com o sentido do discurso tutelar. Carlos do Carmo, Sérgio Godinho, Jorge Palma, Xutos & Pontapés, Pedro Abrunhosa, Rui Veloso, Trovante, Capicua, etc., etc., etc., nunca passaram da versão cantada da liturgia revelada nos livros e obras dos profetas (con)sagrados. Veja-se se se tolera a um qualquer estudante numa sala de aula recôndita que se desvie da nova Cartilha Maternal.

Enfim, Portugal democrático é um sufoco mono intelectual e monocultural que o Estado Novo apenas imaginou. Na génese do fenómeno está o recalcamento terceiro-mundista, sistemático, opressivo, agressivo da figura histórica de Salazar cujo poder, como o de todos os regimes do passado e do presente, oscilou entre o negativo e positivo. Forçar a que se reduzam a posteriori os seus significados a uma só tendência é o cúmulo da adulteração da verdade histórica. Vivemos o que em tempos se escreveu e disse da noite das trevas da idade média, hoje comprovadíssima manifestação de ignorância.

Não vou avançar muito mais no que a Salazar diz respeito para não perder a minha carta de alforria no país das mais amplas liberdades.