1. Levei metade do almoço a convencer a filha de que a vida de seu pai, Manuel Vinhas (1920/1977), reclamava biografia e não era a primeira vez que eu lho dizia. Em Portugal regista-se pouco, é-se avaro com a memória e é pena: Manuel Vinhas foi um português de fôlego, só há uns como ele de vez em quando. Era amigo de nossa casa onde sempre ouvia falar dele de modo invulgar E quando mais tarde passei a encontrá-lo, apercebi-me da sintonia entre o que me fora descrito na adolescência e o homem que ali estava: graça, punch, inteligência, imaginação, trabalho. Diferença.
2. Passava-se este almoço em sábado luminoso numa casa além Tejo onde se celebravam os noventa anos do Mário Vinhas, irmão do Manuel. Juntaram-se amigos que Vinhas é uma marca – e antes de tudo mental – com qualidade. Eram dois irmãos diferentes entre si mas tinham ambos, pouco portuguesmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas no país e a fazê-las bem. Assim de repente posso falar em agricultura, indústria, em múltiplas empresas bem sucedidas, aqui ou em África, à mistura com uma natural prática do bom gosto: arte moderna, livros, porcelanas, antiguidades. Depois havia a caça mas, mais que caçadores, eram os dois formidáveis atiradores. Tão dotado era o jovem Mário que Américo Thomaz o levava consigo, a ele e a outro jovem igualmente dotado, para poder brilhar diante de Franco quando convidado por este para caçar em Espanha: o almirante ficava com a fama e o proveito, por interposto atirador. Mas duvido que ao generalíssimo, que em pessoa recebia este terceto português, escapasse o expediente do congénere lusitano.
O culto do desporto a que Mário Vinhas e a sua família também se dedicaram durante décadas cobri-os de medalhas: da água à neve, do voleibol ao ping-pong, ganharam não sei quantos campeonatos.
Uma espécie de polivalência criativa que o dinheiro só por si jamais explicaria (e este é um dos meus pontos neste texto.) Que seria do dinheiro sem a marca Vinhas?
3. Mais do que ser do regime, Manuel Vinhas coincidiu temporalmente com ele o que não é exactamente o mesmo. Avistava-se por vezes com Salazar por causa de África, tinha amigos em todo o lado, era bem visto e bem-vindo nas oposições onde incentivava intelectuais, artistas plásticos de quem foi um generosíssimo e permanente mecenas, actores. Desde os mais jovens nos recém-formados grupos independentes, (a Comuna e outros) a quem ele ou o seu irmão cediam instalações, até Raul Solnado ou Vinicius, que lhe devolviam a devoção que Manuel Vinhas lhes dedicava (são memoráveis algumas histórias protagonizadas por eles em Lisboa, no Estoril, na Bahía, no Rio…)
Por uma extraordinária coincidência — e acho quer não estou a sonhar — passei a tarde do dia 16 de Março de 1974 com o Manel Vinhas. Por puro acaso: embora cada um pelo seu lado, ambos tínhamos ido ver uma peça (“A Ceia”) ao teatro da Comuna justamente – fundado em 1971 por João Mota e Manuela de Freitas, entre outros — e ao tempo instalada, por cedência de Mário Vinhas, nas instalações da Central de Cervejas. Peça teatral onde de resto o Manuel Vinhas já se tinha encarregue, em anteriores ocasiões, de ter levado Azeredo Perdigão, Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, então ministro ou ex-ministro da Educação, não me lembro. Do que me lembro foi daquela espécie de ansiedade que a todos tingia nos bastidores, onde após a representação, se tinham reunido alguns amigos, com o Manuel Vinhas a aparentar uma serenidade que não sentia.
Conjecturas — quem eram aqueles militares, que era aquilo?” — alegrias, falsas alegrias, ilusões, receios. O pano caiu nos bastidores sobre a desilusão final: o golpe das Caldas falhara. Que se seguiria?
4. Manuel Vinhas tinha paixão por Angola, era o seu outro pulmão. Defendia a autonomia dos territórios africanos que discutia com Salazar, o que levou a Pide a nunca se desinteressar dele – contribuindo incansavelmente como empresário para o seu desenvolvimento económico e social. Porventura também acreditava que quando chegasse a tal “autonomia”, já haveria pelo menos uma rede estruturada a sustentá-la.
Um dia produziu uma cerveja que deu brado em Angola e logo outra em Moçambique; animado, houve uma terceira no Brasil. Por lá – e por cá – os irmãos Vinhas foram erguendo fábricas, fundaram dezenas de empresas — vidro, cerveja, café, fruta, plástico –, criaram milhares de empregos. Mas quer em África, quer em Portugal, sempre com a consciência da sua responsabilidade social junto de quem com eles trabalhava e isto para resumir depressa décadas de decente — e na altura relativamente pioneiro — procedimento patronal. Se houve coisa que também os distinguisse foi esta.
Eram uns fazedores que acreditavam: gostavam de Portugal, tinham fé no país, acreditaram como tantos portugueses nos amanhãs de Marcelo Caetano, tiveram veemente esperança noutro desfecho para África. Tudo isto sem que jamais lhes ocorresse sequer poderem ser tratados de fascistas, confundidos nacionalistas, acusados de colonialismo quando produziam riqueza nas Áfricas, com tanto trabalho quanto convicção de que faziam o seu melhor (e provavelmente gerações bem abaixo das minha ignorarão que houve gente assim em Portugal se é que lhes interessa o que estou a contar, ou sequer se me acompanham). Mas não é por não restar já pedra sobre pedra de tudo “isto” que desistirei de tentar reerguer algumas delas. Que “isto” é este? É a sensação de que se acha, se pensa, se ensina, se defende que Portugal nasceu no dia 25 de Abril de 1974.
5. Neste sábado e neste lugar além Tejo festejava-se o Mário. Noventa anos. E como se tratava “dos Vinhas” em vez de um festejo banal, discursos fastidiosos e cantares lacrimejantes, os netos (quem sai aos seus) puseram uma câmara de filmar frente ao avô, ligaram um gravador, fizeram perguntas em voz off e com a ajuda de profissionais, editaram o resultado para estrear hoje.
Pelo filme, contados pela própria voz fatigada do Mário Vinhas e ilustrados com nomes e histórias, passaram vários Portugal, cada um deixando a pairar a sua quota parte de peso e memória, festa e melancolia, desastres e feitos: o Portugal ainda do império, o da revolução; o da transição democrática liderada por outro Mário, o Soares. E o Portugal de hoje, estabilizado e europeu. Viagem de sabor agridoce.
6. Manuel Vinhas morreu cedo (56 anos) num hospital da Bahía. Exilara-se no Brasil, meses após o 25 de Abril de 74. Foi maltratado, magoado por gente que prezava, provou o sabor da desilusão, inversamente proporcional à ilusão que tivera. Poisou nalguns países europeus, vindo a desaguar no Rio de Janeiro e depois, Salvador da Bahía. Foi lá que escreveu um livro triste. (Ter-se-á porventura esquecido que não se deve confiar por aí além na natureza humana.)
Mário Vinhas está vivo e bem vivo. Louva-se-lhe a memória e agradece-se-lhe o culto da amizade. O primeiro valeu muito a pena. O segundo ainda vale.