Temos todas as razões para estar furiosos com alguns banqueiros. Mas isso não nos deve impedir de olhar para os dados, pensar sobre eles e retirar conclusões. É isso que nos deve ser exigido como cidadãos, para que não sejamos cúmplices de estratégias populistas que apenas contribuem para o agravamento do já de si elevado analfabetismo financeiro. E o caso BES/Novo Banco tem sido, desde a sua origem, um caso em que praticamente toda a classe política tem contribuído para alimentar a raiva, impedir que se pense com base no mal menor. Desde a resolução aos mais recentes episódios que têm por base a auditoria da Deloitte, todos os partidos têm caído na tentação do populismo.
Comecemos pelo caso mais recente. Os partidos aprovaram uma auditoria ao Novo Banco, o Governo e o Banco de Portugal decidiram o âmbito da auditoria, respondendo em grande parte às exigências que se iam colocando no espaço público, designadamente do Presidente da República. A auditoria está concluída. E o que se faz? Desvalorizam-se os resultados porque não se encaixam na narrativa político-partidária que convinha a cada uma das partes. Mais ainda, estamos no espaço público a discutir um documento que poucos conhecem, podendo estar a maioria a ser manipulada.
O PSD não gosta da auditoria, tal como o BE – o PCP tem mantido uma inteligente discrição – porque não conclui aquilo que desejava, designadamente não indicia de forma clara que as vendas de activos foram feitas ao desbarato. O PS não gosta da auditoria porque torna claro que a venda do Novo Banco tinha uma factura praticamente certa de quase quatro mil milhões de euros a pagar em prestações de 2018 a 2021.
E estamos a falar apenas dos acontecimentos mais recentes. Porque o PSD tem razões para não gostar da auditoria também por demonstrar que a promessa “sem custos para o contribuinte” não era verdadeira. E o PS tem razões para estar desconfortável com um passado anterior à resolução em que a supervisão falhou e a cumplicidade do seu então Governo com o grupo de Ricardo Salgado foi para além do que seria normal, enquanto soberano. (Sim, é verdade que os tempos eram outros e supervisão se fazia de outra maneira.)
Do que se sabe há um conjunto de conclusões que já se podem tirar, ou antes, são reforçadas se alguém, mais distraído, não o tinha ainda percebido. Comecemos pelos tempos mais recentes, pela venda.
É claro do que temos lido e ouvido nos últimos dias que o Governo, o Banco de Portugal e o comprador Lone Star sabiam que os 4.890 milhões de euros designados como de capital contingente eram, na realidade, injecções certas de capital. É basicamente isso que encontramos assumido no documento da Comissão Europeia, que aprova a ajuda de Estado ao Novo Banco e que se deve ler pacientemente aqui. A Comissão Europeia chega a considerar que esses recursos poderão ser insuficientes, tal a dimensão das perdas que estavam já identificadas em 2017.
Ou seja, e tal como analiticamente se vinha afirmando e agora é verbalizado, por exemplo, pelo presidente do Novo Banco, estamos perante um modelo de venda que envolve dinheiro do Estado – a prazo, dos bancos do sistema – tal como aconteceu com o Banif e a CGD. A diferença, neste caso do Novo Banco, é que os pagamentos se fazem a prestações. No caso da CGD, injectou-se o dinheiro à cabeça, cinco mil milhões de euros, 2.500 milhões de euros dos quais em dinheiro. No Banif, o Governo decidiu que ficava com os activos que o Santander não queria, colocou-os numa empresa, a Oitante, e mesmo assim teve de “pagar” indirectamente ao comprador cerca de 1700 milhões de euros.
O Governo poderia ter decidido limpar o banco, injectando quase cinco mil milhões de euros, e só depois vendê-lo – este seria um cenário equivalente ao da CGD e à nacionalização e os valores são referidos pelo primeiro-ministro quando anuncia a venda do banco (agradeço aqui a Bruno Faria Lopes ter encontrado este vídeo da RTP). Ou seguir o modelo do Banif: retirar os activos tóxicos, avaliados em termos líquidos em 7,9 mil milhões de euros, para uma empresa e vender a seguir o banco. Não o fez. E não o fez porque não havia Orçamento do Estado que aguentasse os elevados montantes envolvidos, porque o Governo precisava de apresentar contas públicas mais equilibradas para o país sair do procedimento por défices excessivos e porque, simultaneamente, tinha de redistribuir algum dinheiro para manter o acordo que tinha à esquerda e a promessa de “virar a página da austeridade”.
Deste ponto de vista, a venda do Novo Banco seguiu a regra da “arte do possível” face às restrições financeiras e políticas que o Governo de António Costa enfrentava na altura. Mas é claro na decisão da Comissão Europeia, já citada, que o Governo, o Banco de Portugal e o comprador sabiam que os 7,9 mil milhões de euros de activos — crédito e imóveis – colocado de parte iam ter seguramente perdas da ordem dos 4 mil milhões de euros, ou seja, cerca de 50% estava perdido. E assinaram acordos em que selaram esse conhecimento.
Consegue-se compreender tudo isto – os condicionalismos e a decisão que pode não ter sido óptima mas foi a menos má. O que não se consegue compreender é a dificuldade em explicar aos portugueses porque é que o fizeram, optando pelo populismo e pelo obscurantismo. E neste discurso que em nada contribui para que se perceba as razões das decisões são responsáveis não apenas o Governo, mas todos os partidos que se sentam no Parlamento, cada um com o seu objectivo a usar o banco como arma, como meio para atingir os seus fins.
Usar o Novo Banco como ferramenta de combate político não é um erro menor, é um grave erro que nos pode custar bastante caro. A banca vai enfrentar tempos difíceis no próximo ano e este é um tempo em que é preciso fazer os possíveis para que esteja preparada para o embate. Contrariamente ao que se diz, nós não temos salvo bancos, temos salvo os nossos depósitos e a nossa economia.
Nada disto corresponde a dar ao Novo Banco, à sua gestão, ao seu accionista, ao Governo e ao Fundo de Resolução uma medalha de bom comportamento. Do pouco que se sabe da auditoria, percebe-se que o acordo de venda podia ter sido melhor, com um desenho que desincentivasse mais o recurso ao dito capital contingente. Assim como se percebe que a supervisão das vendas podia ter sido um pouco mais exigente, indo mais à substância e menos à forma, para citar o livro “Para onde vai a Banca em Portugal” de Jorge Braga de Macedo, Nuno Cassola e Samuel da Rocha Lopes. Aí se identifica, nesse tipo de procedimentos – mais forma que substância —, um dos problemas de quem fiscaliza os bancos.
Um exemplo de forma sem a respectiva substância está no facto de, legalmente, ser satisfatório verificar se há detentores de mais de 25% do capital dos fundos que compraram activos ao Novo Banco. É lei, dizem. E foi aprovada em 2017 e reforçada em 2020 pela Assembleia da República. Mas, sendo legal, na substância nunca saberemos se há algum subscritor desses fundos que seja parte relacionada.
Usar todos os meios para atingir os objectivos político-partidários, sem olhar para o contributo que dão para que a sociedade não pense de forma racional e informada, sobre as decisões que são tomadas, é tudo aquilo que a política não devia ser, menos ainda num tempo em que os discursos populistas estão a ter uma perigosa aceitação. Merecemos que nos expliquem as razões das decisões e não nos tratem como incapazes ou apenas capazes de aderir ao populismo que nos propõem, todos.
* Este título foi originalmente escrito por Bruno Faria Lopes, como se pode ler neste link. As minhas desculpas ao autor por ter inadvertidamente usado o seu título que agora peço emprestado.