Pablo Iglésias declarou aos jornalistas, depois de ter votado, que os resultados das eleições do dia 20 de Dezembro de 2015 dariam certamente início a uma “nova transição”. Para aqueles que não sabem, ou não se lembram, para Espanha e para os espanhóis “transição” equivale a um período de cerca de três anos iniciado, com a morte de Francisco Franco, a 20 de Novembro de 1975 e concluído a 6 de Dezembro de 1978 quando, após um longo e conturbado processo político-jurídico, se aprovou em referendo uma Constituição que entraria em vigor semanas mais tarde.

A nova Constituição pôs fim a três anos de uma angustiante indefinição político-constitucional, a quase 40 anos de um regime autoritário de direita, mas também rompeu com a pesada herança política e social deixadas pela II República e pela Guerra Civil, e cujas consequências não podiam então, como não podem hoje, ser ignoradas. Por outro lado, o novo texto constitucional sedimentava uma monarquia constitucional, naturalmente de matriz liberal, democrática e social, inspirada nos modelos então vigentes na Europa setentrional, mas ainda na própria tradição da monarquia constitucional espanhola.

De original, face à tradição europeia e espanhola, a Constituição de 1978 incluía uma complicada e muito negociada solução que tentava resolver o problema político dos três nacionalismos “históricos” existentes na Galiza, no País Basco e na Catalunha. Além do reconhecimento de muitas das reivindicações dos nacionalismos “históricos” no sentido de uma profunda descentralização política e administrativa, a Constituição espanhola de 1978 mitigou os desafios, e seriam muitos, colocados pelos nacionalismos “históricos” lançando mão de um processo político que prometia, e viria a cumprir, tornar a Espanha num estado de autonomias no qual, a prazo, pouco ou nada diferenciaria, do ponto de vista político-jurídico e administrativo formal, as realidades vasca, galega, catalã, ou mesmo navarra, da de Aragão, de Valência ou das Baleares, mas ainda da das Astúrias, da Cantábria, das duas Castelas, da Extremadura, da “Comunidade de Madrid”, das Canárias ou da Andaluzia…

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Independentemente daquela que seja a singularidade do sistema político e constitucional espanhol; independentemente ainda daquelas que tenham sido as intenções de Pablo Iglésias ao falar de uma “nova transição” – seja ela apenas um desejo ou uma realidade –, a verdade é que os resultados das eleições de ontem em Espanha permitem muito mais soluções de continuidade do que de rotura ou, quando menos, de um reformismo profundo, sendo por isso certo que não abrem, ao menos para já, a porta ao início de uma “nova transição”. Isto porque para que uma “nova transição” aconteça será necessário que os partidos políticos que a defendem – Podemos e alguns partidos e coligações nacionalistas – consigam ou uma ampla maioria eleitoral para a levar a cabo; ou, então, que exista um entendimento entre, pelo menos, três dos quatro maiores partidos políticos (sendo o PP sempre indispensável) que possibilite um consenso em torno da necessidade de uma “nova transição”.

Como é bom de ver, e tendo em conta o conteúdo dos programas políticos sufragados e a animosidade política e pessoal que separa as “esquerdas” do “centro-direita”, nada nos resultados de ontem nas eleições permitirá tal “transição”, a não ser que a multiplicação por dois do bipartidarismo seja a nova “transição” ou, ao menos, o seu início, ainda que sem direção definida e liderança identificada.

Embora se possa defender que por causa das políticas de engenharia política, cultural e social lançadas por Zapatero; em resultado do impacte económico, social e político gerado pelo resgate do sistema financeiro espanhol e que o PP apoiou e executou; ou ainda como consequência da corrupção que corrói quotidianamente PP e PSOE ao nível da governação nacional, autonómica e concelhia (mas afetando ainda algumas formações exclusivamente autonómicas, como sucede na Catalunha), o sistema político espanhol necessita de profundas mudanças e que essas mudanças são eventualmente desejadas por uma ampla maioria social, a verdade é que os resultados das eleições de ontem não só não as facilitarão como, sobretudo, não as permitirão. Ou seja, ainda que os espanhóis possam coincidir, e coincidem, no diagnóstico que fazem de alguns dos principais problemas de Espanha, a verdade é que relativamente às soluções a encontrar estão hoje mais divididos do que alguma vez estiveram nos últimos quase 40 anos.

Por isso, em Espanha seriam necessários consensos políticos e sociais e uma liderança clara, tanto política como pessoal, para que profundas e sólidas mudanças pudessem acontecer. Ora aquilo que os resultados das eleições demonstram, com a fragmentação política por todos constatada e por alguns desejada, é a quase impossibilidade de encontrar os tais consensos que permitam dar início a um processo de mudança que combata e encurrale a corrupção, modernize a economia e a sociedade, combata um desemprego insustentável, ponha as finanças do estado, das autonomias e do poder local em ordem, combata o populismo e resolva o problema da estrutura e do modelo político do estado autonómico. Em resumo, que seja capaz de recuperar, reformando, o espírito e a letra do regime e do sistema político pensados pelos pais fundadores da uma nova Espanha nascida na transição de 1975-78.

Sucede que praticamente todos os comentários e análises aos resultados das eleições de ontem ignoraram os problemas de fundo que vive a sociedade espanhola e por que passa o sistema político espanhol e o próprio modelo autonómico. Comentários e análises centraram-se na questão das vitórias e das derrotas absolutas e/ou relativas conquistadas ou sofridas pelas principais forças políticas e, em seguida, no problema da governabilidade. Está-se atento aos sintomas de uma doença grave, mas ignora-se aquilo que a provoca.

Nesse sentido, tentar antecipar quem será o novo presidente do Governo – Mariano Rajoy ou uma outra personalidade destacada no PP (Soraya Sáenz de Santamaría?), Pedro Sánchez ou uma segunda figura do PSOE -, se o novo Governo será de esquerda ou de direita, se será monopartidário ou de coligação, ou se contará apenas com o apoio de terceiros partidos para a sua investidura, é certamente importante e compreensível. Porém, e nas atuais circunstâncias, o Governo que saia, se sair, destas eleições e deste parlamento será sempre um Executivo limitado tanto no tempo como na ambição reformista do respetivo programa. Pelo meio haverá negociações e simulacros de negociações, os dois “vencedores” das eleições – Podemos, sobretudo, e Ciudadanos – tentarão maximizar os seus resultados, preservar a sua imagem e reformular ou consolidar as respetivas mensagens para o caso de, dentro de um par de meses, ocorrerem novas eleições legislativas (dificilmente, por exemplo, PP ou PSOE lhes darão a nova lei eleitoral que reivindicam e que, caso fosse aprovada, lhes garantiria mais deputados nas próximas legislativas).

De qualquer modo, com ou sem Governo – monopartidário ou de coligação -, com ou sem pacto de investidura que permita que um novo Governo tome posse e tente governar, com ou sem eleições dentro de dois meses ou de dois anos, o futuro de Espanha e dos espanhóis é mais de impasse do que uma incógnita. Nenhum dos bloqueios da vida política e social espanhola será resolvido com uma tão profunda balcanização qualitativa e quantitativa do parlamento, devendo-se ainda acrescentar que não é certo que novas eleições venham a produzir resultados que removam ou diluam os atuais bloqueios e aqueles que ainda se virão a revelar.

Perante uma realidade em tons tão sombrios resta finalmente saber que reflexos terão na “Europa”, na “zona euro” e, já agora, em Portugal, os resultados das eleições de ontem em Espanha e a (minha) previsão de que a Espanha, que não é nem a Bélgica nem a Itália, poderá viver sem governo de facto não durante algumas semanas ou meses, mas durante, talvez, um par de anos, ainda que com novas legislativas pelo meio.