O 25 de Novembro mantém-se muito controvertido – artificialmente, creio eu – na história contemporânea e na política nacional. Artificialmente, porquê? Porque os factos em si são bastante simples, e também claros e transparentes. O 25 de Novembro assegurou a ronda eleitoral de 1976, em que o povo foi chamado a fundar a democracia.
As interpretações é que variam, assim como intenções, suposições e especulações. O 25 de Novembro, data que muitos não querem, é para estes muitos, e ainda outros, uma data sobre que, voando longe dos factos, dizem saber tudo e algo mais. Discutamos tudo, mas não nos desconcentremos. Regressemos sempre aos factos: a democracia nasceu em 1976, porque houve o 25 de Novembro; por isso, o 25 de Novembro devolveu o 25 de Abril ao seu propósito original, libertando-o dos que queriam amarrá-lo a nova ditadura. Otelo levá-lo-ia ainda ao extremo, depois de tudo passado, ao querer amarrar o 25 de Abril a um movimento terrorista.
Contra a intenção do Partido Comunista Português e da extrema-esquerda de instalarem uma nova ditadura em Portugal, o 25 de Novembro foi o corolário último de um movimento de resistência na sociedade portuguesa. A resistência começou ténue, desde os primeiros sinais dessa ameaça; e foi-se tornando mais vigorosa à medida que a ameaça engrossou.
No plano político civil, foram sempre Mário Soares e o PS a encabeçar essa resistência – as eleições constituintes confirmaram-no, aliás, como o maior partido na altura e, portanto, aquele que tinha esse peso político e essa legitimidade democrática. Na base, movimentaram-se muitos outros, como a Igreja, PPD e CDS, os agricultores da CAP, comandos, organizações e movimentos civis diversos.
O primeiro sinal foi, a 16 de Janeiro de 1975, no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, o comício do PS contra a unicidade sindical, pela qual o PCP queria subordinar a totalidade do sindicalismo e dos “trabalhadores”, através das suas “correias de transmissão”, linguagem da época. Estive nesse comício, grande momento político, com intervenções vibrantes de Manuel Alegre, Salgado Zenha e Mário Soares. Para se ter êxito em combater e derrotar a tentação totalitária do PCP, era indispensável que se quebrasse o braço-dado político entre PS e PCP que o “primeiro 1.º de Maio” ungira. O comício pela liberdade sindical representa a ruptura e o sinal de que o PS não toleraria mais abusos e prepotências por parte do PCP. O tom ficou dado para o resto do caminho.
Uma desastrada tentativa de golpe da direita militar, o 11 de Março, adensou, ainda, gravemente o clima revolucionário, após o óbvio fracasso do golpe: o PREC acelerou. O fosso entre PS e PCP foi-se cavando: de um lado, a democracia, que obteria reforço significativo nas eleições constituintes; do outro, os golpistas do PCP e da extrema-esquerda, em agitação contínua rumo à ditadura, tentando cavalgar com a sua ala militar a legitimidade revolucionária.
O segundo grande sinal de alinhamento civil, aconteceu em 19 de Junho, no Comício da Fonte Luminosa, em que o PS liderou a concentração de enorme multidão na Alameda, em luta por “democracia sim, ditadura não”, enquanto Mário Soares exigia a demissão de Vasco Gonçalves e o fim do IV Governo Provisório. Também estive lá. Ainda fui à entrada de Lisboa, nos grupos que tentavam libertar manifestantes travados pelas barricadas e pela tropa. O comboio do desastre estava em marcha e nunca mais pararia.
Sucederam-se incidentes e provocações, algumas intervenções caudilhistas alucinadas de Vasco Gonçalves, prisões arbitrárias pelo COPCON, o V Governo Provisório (o mais provisório dos governos provisórios e o último de Vasco Gonçalves), revoltas populares no Centro e Norte contra sedes comunistas, o “grupo dos Nove” (separando os militares moderados das linhas gonçalvista e otelista), a agitação nas ruas e nos quartéis, manifestações de massas com PS, PSD e CDS em apoio de Pinheiro de Azevedo, o cerco do Palácio de São Bento e o sequestro da Assembleia Constituinte pelos revolucionários de PCP e extrema-esquerda montados nos sindicatos.
Face ao crescendo contínuo da pressão extremista, o sentimento recorrente na resistência era “isto vai ter de acabar”, “isto vai ter de acabar”, “isto vai ter de acabar”. O 25 de Novembro foi isso: acabou! E acabou mesmo.
Mas o 25 de Novembro não foi um movimento: nem “movimento possível”, nem impossível. O 25 de Novembro não foi um movimento para implantar uma nova ordem. Foi apenas a resposta para acabar com a desordem.
Quem tinha um movimento eram os do PCP e da extrema-esquerda: vinham a movimentar-se desde há meses e, naquela madrugada, movimentaram-se para uma golpada. Esta golpada foi abortada pelos militares moderados, que estavam do lado da democracia. Abortada em definitivo. Como as fontes mais autorizadas, como Ramalho Eanes, têm testemunhado, o 25 de Novembro, que triunfou, não tinha ideologia. Ou, se quisermos alguma, o 25 de Novembro só teve a ideologia da democracia e da cidadania. Nada mais.
Quando Manuel Castelo-Branco, a respeito do 25 de Novembro, cita Lucas Pires – «vencedores e vencidos querem o socialismo, tal e qual o mesmo» –, as coisas não foram exactamente assim. Por um lado, do lado dos vencedores, estava o CDS, que era adversário declarado do socialismo e sempre se apresentara como alternativa. Por outro lado, se quisermos olhar só aos principais protagonistas vencidos e vencedores, civis ou militares, aí, sim, encontraremos comunistas de um lado e socialistas do outro – é um velho clássico desde a II Internacional e nas lutas entre mencheviques e bolcheviques. Mas o 25 de Novembro não teve, nem tem nada a ver com isto.
O assunto, a agenda do 25 de Novembro foi exclusivamente a democracia, nada mais do que a democracia. O resto se veria, depois, regularmente, nas eleições. Não mais a batota, não mais a autocracia a partir do poder conquistado. O 25 de Novembro foi só isto. E não foi pouco.
Concordo com o Miguel Pinheiro, ao apontar que «os partidos da direita decidiram que valia a pena copiar o que a esquerda fez com o 25 de Abril: adulterar a História para ganhar uma bandeira». Não sei se são todos a fazê-lo – espero que não sejam. Se o fizerem, os que o fizerem começarão a perder, antes mesmo de terem ganho. Importa não adulterar a História, porque o 25 de Novembro é muito importante exactamente como foi: o repositor do 25 de Abril. E foi o repositor do 25 de Abril contra o PCP e a extrema-esquerda. Ou seja, o PCP e a extrema-esquerda estiveram contra a reposição do 25 de Abril. Nós, que estivemos lá, sabemos isso. Mas é preciso mostrá-lo aos que não estiveram e não sabem.
Quando, depois de toda a difamação que têm feito do 25 de Novembro, faltam, agora, à Assembleia da República, ostentando todo o seu sectarismo contra o parlamentarismo, mostram dois factos inegáveis: primeiro, PCP e extrema-esquerda foram os derrotados do 25 de Novembro e ainda não digeriram a derrota; segundo, o seu discurso é carregado de mentiras. Quase 50 anos depois do 25 de Novembro, é evidente para qualquer português que o 25 de Novembro não trouxe o fascismo, mas trouxe as eleições livres e democráticas, trouxe o governo responsável perante o povo e trouxe a paz civil.
Sempre que o PCP e a extrema-esquerda berrarem “fascistas”, é contra si próprios que estão a berrar. Queriam-nos no estado em que ainda hoje está Moçambique, lutando dolorosa e corajosamente para ser livre.
Já não concordo com Miguel Pinheiro, quando escreve que, com o 25 de Novembro, «simplesmente, Portugal deixou de ter uma democracia sitiada e passou a ter uma democracia tutelada.» É que o Pacto MFA/Partidos não foi uma criação do 25 de Novembro, é filho do 11 de Março. Foi estabelecido em Abril, ainda antes das eleições constituintes: era a forma de o poder revolucionário (onde preponderava o PCP) procurar amarrar os demais partidos ao rumo da revolução – o socialismo – e a um modelo do poder autoritário com forte predomínio da legitimidade revolucionária, através do Conselho da Revolução e da Assembleia do MFA, em regime bicameral com a Assembleia da República.
O 25 de Novembro, ao derrotar a esquerda golpista, permitiu a revisão deste pacto num sentido muito mais moderado (mas não, infelizmente, a sua revogação). Entrámos, nesse sentido, numa “democracia tutelada”, mas em termos muito mais suaves do que o regime férreo previsto no 1.º Pacto. No 2.º Pacto, o Presidente da República passou a ser eleito por sufrágio constitucional; as competências governativas e legislativas do Conselho da Revolução ficaram limitadas às questões militares; e as suas competências de controlo da constitucionalidade das leis era mediada por uma Comissão Constitucional de peritos. Quem olha, hoje, para o 2.º Pacto, sem ponderar mais nada, vê ali um redil – e não vê mal. Mas para quem vivera meses a fio sob ameaça de o 1.º Pacto passar a letra constitucional, aquele era o alívio extraordinário que libertava Portugal e os portugueses de um terrível colete de forças. E, fosse como fosse, a relação de forças não permitia obter mais.
Francisco Sá Carneiro também assinou, como líder do PPD, os dois Pactos MFA/Partidos, o de Abril 1975 (filho do 11 de Março) e o de Fevereiro 1976 (filho do 25 de Novembro), assim como os assinaram também Mário Soares e Freitas do Amaral. O 2.º Pacto, como já referi, libertando o encerramento dos trabalhos da Assembleia Constituinte de amarras previstas no 1.º Pacto, abriu as portas ao ciclo eleitoral fundador de 1976: 25 de Abril, legislativas; 27 de Junho, presidenciais; e 12 de Dezembro, autárquicas.
Pode também querer-se diminuir ou ignorar o papel do CDS na evolução da revolução para a democracia. Infelizmente o CDS, que teve muitas rupturas internas, descurou a sua história sobretudo nos últimos 30 anos. E desenvolveram-se lendas ou biombos que obscurecem os factos de há 50 anos. Há também muito desconhecimento. O CDS nunca participou nos governos provisórios. E obteve 7,6% nas eleições constituintes. Mas teve sempre intervenção activa e contrastante, apesar das dificuldades específicas. Dos partidos legalizados e com assento parlamentar, foi o único que sempre recusou o socialismo e defendeu a alternativa. Declarou-se, abertamente, da oposição, a seguir ao 11 de Março. Criticou repetidamente a descolonização que estava a ser feita e teve militantes que se mobilizaram para acolher os refugiados à chegada. Teve, em 1975, militantes e um dirigente feitos presos políticos às ordens do COPCON, sem culpa formada, por puro arbítrio, três deles só libertados em Dezembro, após o 25 de Novembro. Votou sozinho contra a Constituição, por causa da amarra ao socialismo e das limitações à democracia, com o que abriu a porta às subsequentes revisões constitucionais.
Nem vou dizer que é injusto, mas é errado escrever: «o CDS, ainda a tentar afirmar-se e a lutar pela sobrevivência, limitado ainda aos seus 7,6% era liderado por Freitas do Amaral, que não tinha as características nem as convicções para encabeçar qualquer tipo de movimento nacional.» Pode não se gostar de Freitas do Amaral, mas, por sinal, foi ele que, em 1985/86, interpretou o movimento nacional “Prá Frente Portugal”, que quase o elegeu Presidente da República, em 1986. Além disso, em pleno “Verão quente”, Freitas do Amaral teve uma noite especialmente brilhante na RTP, numa entrevista dura por uma tripla de jornalistas (José Carlos Megre, José Manuel Galvão Teles e Adelino Gomes), num programa “Responder ao País”, que ficaria famoso. Artur Portela Filho dedicou-lhe o editorial no Jornal Novo, que abria assim: «O que se passou, ontem à noite, na televisão, foi extremamente grave. Três homens com razão foram batidos por um homem que a não tinha.» Era difícil um cumprimento maior por uma grande vitória na luta política contra o socialismo. Ainda por cima rara, porque mais ninguém, senão o CDS, a travava.
O CDS merece o dia de hoje, porque é o partido que mais se bateu, desde há muitos anos, pela evocação digna e celebração de uma data tão importante para a conclusão positiva da revolução e a passagem à democracia. Não é preciso um feriado, mas uma celebração parlamentar anual, que deve durar tanto tempo quanto o necessário a que todos os partidos e deputados aceitem o 25 de Novembro por aquilo que foi – e é –, rendendo-se à evidência. E participem, como é próprio do pluralismo. Democracia também é aturarmo-nos uns aos outros; e é ao 25 de Novembro que devemos aturarmo-nos uns aos outros.
Em suma: O 25 de Novembro não foi um movimento, mas uma resposta: a resposta. Não foi uma revisão ideológica, mas a garantia do debate livre e igual. Não foi um golpe, mas o fim dos golpes. O 25 de Novembro é o dia que assegurou a ronda eleitoral de 1976, em que o voto do povo fundou a nossa democracia. Morreu o PREC! Viva a Democracia!