Há três semanas, Pedro Adão e Silva, comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, declinou que incluíssem também o 25 de Novembro de 1975, porque, apesar de ser “uma data marcante”, é “uma data que diz pouco”. Só o facto de ter nascido em 1974, tendo um ano de idade quando tudo aconteceu, explica apreciação tão ligeira e fora da realidade.

Acrescentou: “se queremos fazer destas comemorações um momento de falar para os jovens, teremos sempre muita dificuldade em falar do 25 de Novembro. É um tema muito importante para os jornalistas, para os comentadores e para alguns políticos, mas diz pouco à sociedade portuguesa.”  Adão e Silva foi também – vê-se – um desses jovens com “dificuldade” quanto ao 25 de Novembro, porque não o viveu, não teve curiosidade em saber e ninguém lhe contou.

Poderia, por exemplo, ter perguntado a Mário Soares, que liderou a liderança do PS nos partidos democráticos para travar e derrotar o desvio totalitário do 25 de Abril. Henry Kissinger vaticinou que Soares ia ser o Kerensky português, isto é, a cópia do líder social-democrata russo que, depois de ter estado entre os que derrubaram o czarismo no princípio de 1917, foi tragado pela revolução de Outubro dos bolcheviques. A história provou o contrário. Em Portugal de 1975, o comboio do desastre foi parado na última estação: o 25 de Novembro. Se Adão e Silva lhe perguntasse, certamente Mário Soares lhe contaria a grande e justa importância do dia e lhe explicaria a indispensabilidade de o contar e explicar, sobretudo aos jovens que não o conheceram ao vivo.

Sendo 20 anos mais velho, sou dos que não tive necessidade de estudar, nem de ler, nem de ouvir. Vivi-o. Sei como foi e por que foi. Mas, a quem queira, recomendo um livro, que não é uma tese, nem uma análise, nem um manifesto, nem um dever ser de qualquer sorte: é uma narrativa desprendida da vida do país, do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975. É uma narrativa feita da organização e colagem de múltiplas notícias que foram saindo na imprensa portuguesa desses meses, contando os factos. A selecção é de dois jornalistas reputados, insuspeitos de sectarismo ou extremismo: Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, em edição conjunta do EXPRESSO e do PÚBLICO, então dirigidos por Henrique Monteiro e José Manuel Fernandes.

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“Os dias loucos do PREC” é uma narrativa suficientemente colorida, variada e completa para permitir compreender o 25 de Novembro. O livro não é sobre o 25 de Novembro. Nem chega sequer a 26 de Novembro, dia marcante para entender o 25. É um relato objectivo que dá a compreender como estavam a sociedade portuguesa e o clima político nessa época, como crescia a confrontação e se alargava a fractura, naquilo que, na altura, gracejávamos ser um “manicómio em autogestão”. Ao ler aqueles meses loucos nessas páginas, vemos ou recordamos que o 25 de Abril que celebramos hoje – livre e democrático – já não estava no caminho, mas soterrado no rumo para outro regime qualquer de que só se sabia que ia ser muito mau.

O relato é entre o dramático e o cómico, pois, apesar dos muitos perigos em que estivemos, a nossa revolução teve momentos de comédia, até pelo delicioso pormenor final de tudo ter acabado com o Danny Kaye na televisão.

O 11 de Março cavou clivagens que vinham de trás e acendeu paixões que subiram sempre a aquecer. O PREC foi um trotskismo à portuguesa, um pouco estouvado, uma revolução permanente em modo fanfarrão, mas a si mesmo se chamando o “processo revolucionário em curso” – o acrónimo PREC é isso que significa. Podíamos todos ter batido duramente contra a parede ou caído num abismo negro.

É comum ouvir dizer que Portugal esteve à beira da guerra civil – a pior de todas as guerras. Ninguém pode dizer exactamente que sim ou que não. Mas é consensual que podia ter sido. Militares preponderantes apresentavam o MFA como um “movimento de libertação” inspirado nos movimentos que tinham combatido em África. Viam-se investidos de missão revolucionária. Sentiam-se possuídos de desígnios históricos, escritos na ponta da espingarda. E, à direita, os militares do 11 de Março e outros que se opunham ao PREC formavam outros movimentos que tinham a mesma estética e a mesma sonoridade da guerra de África: ELP (Exército de Libertação de Portugal) e MDLP (Movimento Democrático da Libertação de Portugal). Estávamos a acastelar-nos para o grande confronto. Podia ter sido uma grande tragédia. Em Angola, por exemplo, o trotskismo angolano bateu na parede do 27 de Maio, o trágico dia em que, em 1977, o confronto final aconteceu em Luanda – e iniciou uma mortandade indizível, que se prolongou por semanas de perseguições e atrocidades de partir o coração. Ainda hoje, é uma dor profunda e uma chaga na memória política angolana. Nós não podemos dizer que isso jamais se passaria connosco. Na 1.ª República, também tivemos, em 1921, a “camioneta-fantasma” e sua noite sangrenta. No “Verão quente” de 1975, é preciso ter presente, estávamos cheios de armas, num país em que muita gente sabia disparar, pois vínhamos da guerra. Na verdade, não sabemos o que podia ter acontecido em Portugal, se o desvio e a derrapagem desenfreada continuassem.

O que sabemos é que o 25 de Novembro impediu isso. E de vez. Parou a derrapagem, restituiu o 25 de Abril original à estrada. Pôs o 25 de Abril de novo na praça. Acabou com a desordem. Repôs a ordem: a ordem do Estado de direito. Devemos-lhe imenso quanto ao 25 de Abril, quanto à democracia, quanto à paz de Portugal.

É errado pôr as duas datas em confronto: o 25 de Novembro existiu por causa do 25 de Abril e para repor o 25 de Abril.  Em 26 de Novembro, Melo Antunes (a referência do “grupo dos nove”) proferiu uma declaração em que, depois de fazer rasgado elogio a Jaime Neves, fez a afirmação de a continuação da participação do PCP ser fundamental para a democracia portuguesa. Esta declaração, feita com a gramática do tempo, é fundamental para caracterizar o 25 de Novembro: não houve ajuste de contas político. Não foi mais um contra-golpe. Foi o fim dos golpes.

O 25 de Novembro pôs termo ao vira febril do “golpe/contra-golpe” em que o Portugal se enredava desde o 28 de Setembro de 1974 e que atingira um patamar louco nos rumores desse mês de Novembro: todos os fins de semana se previa golpe em Lisboa e parte da Assembleia Constituinte (que chegou a ser sequestrada) preparava-se para rumar ao Porto e, aí, proclamar e assumir a República democrática. O 25 de Novembro devolveu aos portugueses a possibilidade da liberdade e da democracia. Numa palavra, resgatou o 25 de Abril. Devemo-lo àqueles que o fizeram. E, em especial, aos que morreram por isso.

Num trabalho do EXPRESSO, nos 40 anos do 25 de Novembro, a historiadora Maria Inácia Rezola destacou três consequências do 25 de Novembro: a clarificação político-militar; a citada declaração de Melo Antunes e o seu significado; e a revisão do Pacto MFA-Partidos, que, exactamente duas semanas antes das eleições constituintes, amarrara os partidos e condicionara os trabalhos da Assembleia Constituinte, impondo alguns conteúdos à futura Constituição.

A revisão do Pacto, assinada em 26 de Fevereiro de 1976, permitiu que a Assembleia Constituinte concluísse por uma Constituição muito mais democrática, embora ainda a “caminho para uma sociedade socialista” e com o Conselho da Revolução por um período de transição de quatro anos. Acabou a veleidade de uma Assembleia do MFA com 240 membros, paralela à Assembleia da República; acabou a eleição do Presidente da República por colégio eleitoral (curiosamente idêntico ao último figurino do Estado Novo, substituindo a defunta Câmara Corporativa pela Assembleia do MFA); consagrou-se a eleição presidencial por sufrágio popular, directo e universal; desapareceu o papel institucional do MFA; este deixou de ter de dar a sua confiança aos ministros da Defesa, da Administração Interna e do Planeamento Económico; o Conselho da Revolução deixou de ser o tutor geral do regime, ficando delimitados os seus poderes como órgão político e legislativo em matéria militar e competente para fiscalizar a constitucionalidade das leis, assistido por uma Comissão Constitucional de perfil jurisdicional. Ou seja, o 25 de Novembro também libertou a Assembleia Constituinte das excessivas amarras revolucionárias, impostas aos partidos no rescaldo imediato do 11 de Março.

O 25 de Novembro franqueou, em consequência, as portas a dois marcos fundamentais para o regime que somos: primeiro, o 25 de Abril de 1976, dia das primeiras eleições legislativas para a Assembleia da República, abriu uma legislatura democrática e civil, sem termos mais que viver na briga permanente entre legitimidade democrática e legitimidade revolucionária; segundo, o 27 de Junho de 1976, em que elegemos o Presidente da República, que iria presidir também ao Conselho da Revolução, mas individualmente investido de plena legitimidade democrática própria, emergente do sufrágio universal, popular, directo. Não teria sido assim, se não tivesse sido o 25 de Novembro.

A eleição presidencial escolheu, aliás, por quase três milhões de votos dos cidadãos (61,6% numa participação eleitoral de 75,5%), um dos vencedores do 25 de Novembro, o general António Ramalho Eanes, então apoiado pelos três partidos que, no plano político-partidário, estavam associados à luta contra o desvio totalitário do 25 de Abril e, portanto, à defesa da sua pureza democrática e livre: PS, PSD e CDS.

O poema mais citado sobre o 25 de Abril é de Sofia de Mello Breyner Andresen: “Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo”. Só o podemos cantar hoje, porque o 25 de Novembro o restituiu aos portugueses. Naqueles meses de 1975, carregados de sombras e já algumas trevas, como as prisões arbitrárias e as sevícias, o dia inicial estava quebrado e continuamente manchado, sentia-se chegar outra vez a noite. Foi pelo 25 de Novembro e seus efeitos pacificadores e democráticos que voltou e pôde ser guardada a esperança sem fim que irradia destes versos: “Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo”.

Pedro Adão e Silva, nas declarações que fez, acrescentou ainda: “Devemos concentrar-nos em celebrar aquilo que nos une e não o que nos divide.” Tem de corrigir a sua conclusão: o 25 de Novembro é que uniu e une todos os que querem a liberdade e a democracia. Se algo dividisse seria quanto àqueles que nunca perdoaram o país não ter prosseguido de confronto em confronto até ao abismo final. Mas também quanto a estes o 25 de Novembro permitiu a união no desenvolvimento normal e civil da democracia, conforme a vontade popular determine a cada tempo.

É fundamental lembrá-lo e tê-lo sempre presente: 25 de Abril e 25 de Novembro são dois em um, a razão por que, meio século depois, vivemos em democracia e em liberdade e podemos festejá-las. Quem amputar esta realidade, não une; divide. E divide pelas mesmas linhas perigosas que nos lançavam para o precipício.