No meio da lassidão da canícula, este Verão tem sido fértil em acontecimentos que tornam a vida mais fácil a quem, como eu, continua a escrever para os jornais durante aquela que antigamente era denominada de silly season. Hoje, felizmente, não faltam temas para nos debruçarmos durante o Verão. Esta semana, a denominada Entidade Reguladora para a Comunicação Social, emitiu a sua decisão sobre a entrevista que José Rodrigues dos Santos fez a Marta Temido na campanha para as Eleições Europeias do passado mês de Junho.

Depois de ter recibo várias queixas, típicas, de resto, do espírito censório que permanece na alma caridosa de muitos Portugueses que gostam de vigiar a moral e os bons costumes, a ERC decidiu investigar o que se havia passado na entrevista que, nas palavras dos queixosos, tivera “perguntas capciosas, baseadas em informações falsas, tom violento, contestando todas as respostas”. Mais, outro queixoso, criticando a postura do entrevistador, “entende que a ERC devia tomar medidas”.

A resposta da ERC às queixas não se fez esperar. Para além de afirmar que na entrevista “não foi conferido espaço à entrevistada para expor os seus pontos de vista”, diz ainda que a dita “é suscetível de prejudicar o direito dos telespectadores de serem informados” conforme garante a Constituição. Para além disso, nas suas considerações, a ERC afirma que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”.

Para perceber a salubridade do trabalho desenvolvido pela ERC vale a pena voltar atrás no tempo e utilizar um exemplo concreto onde considerações de igual natureza foram utilizados noutro caso. Em Maio de 2009, depois de várias queixas, incluindo de um deputado do PS, a ERC pronunciou-se, em igual deliberação, sobre o Jornal Nacional apresentado por Manuela Moura Guedes, no qual havia “uma caça ao homem”, segundo o próprio Sócrates. Segundo a deliberação da altura, os noticiários da TVI revelavam falta de “isenção e rigor no tratamento de casos que envolvem o Governo e o primeiro-ministro”. Mais, a ERC afirmava então que os noticiários da TVI “padecem da inexistência de uma clara demarcação entre factos e opiniões”. Seria redundante voltar ao que se passou nos anos seguintes e relembrar que, no fundamental, nos noticiários da TVI estavam a fazer o seu papel: denunciar um político que actualmente está acusado de crimes gravíssimos de corrupção.

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Naturalmente que não existe qualquer comparação entre Marta Temido e José Sócrates. No entanto, o entendimento da ERC sobre o que deve ser o jornalismo permanece inalterado. Os jornalistas devem, acima de tudo, servir de pé de microfone, deixar o político brilhar e assentar com a cabeça mesmo quando o político mente descaradamente. A ideia liberal de que o jornalismo serve como escrutínio feroz ao poder político e económico é algo estranho à cultura política indígena.

A ERC deveria estar preocupada, isso sim, com a total promiscuidade entre comunicação social e poder político que põe em causa o direito à informação dos cidadãos. Vejamos o exemplo das estações noticiosas do cabo. Todas as noites, as casas dos Portugueses são invadidas por políticos – no activo ou em pousio – que comentam, com toda a isenção, obviamente, o que se passa na vida nacional. Os casos são incontáveis, de Catarina Martins, Rita Matias, passando por Pedro Costa, a nova coqueluche da política Portuguesa, até José Luís Carneiro ou Marques Mendes e Paulo Portas, os reis de domingo à noite, que vão fazendo comentário, de resto francamente entediante, enquanto decidem ou não se Belém é um objectivo alcançável em 2026. A escola de Marcelo Rebelo de Sousa está viva e recomenda-se.  Em todos estes casos é verdadeiramente extraordinária a total ausência de barreira entre o comentador e o objecto do comentário. Qual é o interesse jornalístico de ouvir a análise de alguém do PS ou do PSD sobre o que ambos os partidos fizeram? A separação entre “factos e opiniões”, que a ERC tanto defende, fica completamente anquilosada.

No entanto, isto não ocorre apenas nas televisões por cabo. Acontece também nos jornais. No Expresso, por exemplo, depois de ter suspendido a sua coluna durante a campanha, Sebastião Bugalho retomou o seu papel de escriba, juntando-se a Sérgio Sousa Pinto, Rui Tavares, ou Alexandra Leitão, todos deputados da Nação em funções. No Público, recentemente, depois de sair de Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva regressou às lides do comentário, aproveitando os primeiros artigos para falar sobre a demissão de António Costa e as maravilhas operadas pelo seu governo. Tudo isto, claro, esquecendo-se de mencionar que fizera parte do dito governo. Para além de ser profundamente entediante a leitura de toda esta gente, porque os leitores já sabem de antemão qual a linha que defendem, a ideia de conflito de interesses é inexistente.

Face a tudo isto, a ERC – entidade, de resto, de função e necessidade duvidosas – está preocupada porque José Rodrigues dos Santos confrontou Marta Temido com factos e dados, aos quais a candidata não foi capaz de responder? Na verdade, como é evidente, a decisão da ERC não foi verdadeiramente sobre José Rodrigues dos Santos. O jornalista da RTP tem um lastro profissional atrás de si que o torna, na prática, intocável. Para além disso, e graças à sua actividade como romancista, tem a independência financeira para não depender do seu trabalho na RTP, o que lhe dá, obviamente, a independência para fazer o que quiser. Na verdade, o objectivo da ERC é enviar um sinal à navegação de que os jornalistas devem, acima de tudo, estar caladinhos e ter respeito pelos políticos. Assim, a democracia, ou aquilo que passa por democracia em Portugal, fica muito mais saudável.