Dizia-me um amigo, que gosta muito do mês do Mundial, da sucessão de jogos, dos equipamentos coloridos, dos adeptos exuberantes, que tem pouca paciência para os encontros da fase de grupos, sobretudo quando os “caprichos do destino” (ele fala assim, com o tom oracular dos diários desportivos) juntam seleções como Panamá e Tunísia ou Japão e Senegal. Olhei-o com alguma compaixão e depois expliquei-lhe que ele, na verdade, não gosta do Mundial porque o interesse de um Mundial não reside nos jogos que toda a gente quer ver – um Alemanha-Brasil ou um França-Argentina – mas naquelas partidas extravagantes que, em circunstâncias normais, o adepto comum pagaria para não assistir. O Mundial não é fascinante apesar de um Marrocos-Irão. É fascinante porque um cidadão respeitável, sem dívidas ao Estado português (a não ser uma multa por excesso de velocidade ainda dentro do prazo de pagamento), é capaz de almoçar à pressa para se sentar no sofá a ver um Marrocos-Irão e impor à família um regime de silêncio absoluto enquanto se ouvem os hinos nacionais.

É um facto que hoje, na era da informação, o exotismo futebolístico no Mundial se encontra ameaçado. Quase todas as seleções têm a sua estrela planetária. Marrocos, por exemplo, tem o central da Juventus, Mehdi Bhenatia, e quase todos os outros jogadores – a maioria dos quais nascidos em França – jogam em clubes europeus. Felizmente, o Irão ainda resiste e sendo certo que alguns dos seus jogadores atuam ao serviço de potências estrangeiras, como o Marítimo, outros ainda são recrutados em curiosas coletividades locais como o Persepolis, o Esteghlal Theran ou o Padideh.

O Mundial é também o palco preferencial para o sub-género de treinador pós-colonial: o ocidental evangelizador que vai ensinar os bárbaros a jogar à bola. Também nisto o Marrocos-Irão é exemplar. Prosseguindo uma tradição antiga, enviámos para o Oriente o professor Queirós – o nosso Bora Milutinovic – acompanhado de um adjunto cujo nome é quase um resumo da empreitada dos descobrimentos, Oceano Cruz. Os franceses também puseram o seu representante à frente da seleção marroquina, um tal Hervé Renard, de olhar matreiro, como o nome indica, e com todas as condições para daqui a uns anos receber um dos epítetos que invariavelmente recaem sobre os treinadores europeus que visitam tão distantes paragens: o feiticeiro branco, o soba das neves ou o xamã despigmentado.

Ao contrário do que a presença de Carlos Queirós num dos bancos poderia fazer supor, o jogo foi animado. Teve um pouco de tudo, sendo que desse tudo o mais foram entradas algo paleolíticas, livres destinados a reduzir a fauna aviária de São Petersburgo e, perto do final, um versão magrebino-persa de um sururu latino-americano. Se, de início, o Irão exibiu o clássico estilo retentivo das equipas do professor, depois soltou-se e, para choque da comunidade internacional, chegou mesmo a aproximar-se da baliza adversária. Os jogadores marroquinos demonstraram excelentes dotes técnicos e muita cerimónia na hora de rematar à baliza – não fosse Casablanca a capital mais próxima de Lisboa – exceto à deles, como eloquentemente demonstrado pelo avançado Bouhaddouz, autor de um fabuloso autogolo.

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Uma das vantagens de jogos como um Marrocos-Irão é que podemos começar a torcer por uma equipa, acabar a torcer por outra e encontrar motivos de satisfação qualquer que seja o resultado. Por imperativo patriótico, tal descontração já não é admissível quando joga Portugal. De espectador desinteressado e diletante transformei-me em fanático roedor de unhas. Aos três minutos, já tinha insultado seis espanhóis, incluindo quatro vezes o Busquets, e a vasta equipa de arbitragem. (Como tele-espectador agradeço a introdução do VAR neste Mundial porque oferece um árbitro exclusivo para os insultos de quem está em casa.)

A crise espanhola a meio da semana não tinha aumentado o meu otimismo. A confusão no adversário é sempre bem-vinda, mas quando do caos resulta o despedimento de um treinador como Julen Lopetegui, festejos antecipados são imprudentes. As notícias do hara-kiri (do espanhol araquíri, planta venenosa muito usada por suicidas andaluzes) foram manifestamente exageradas. Muitos destes jogadores espanhóis foram campeões europeus e mundiais sob orientação de Luis Aragonés e de Vicente Del Bosque, ou seja, a necessidade que têm de um treinador é meramente burocrática. O que também se aplica a outros casos. Veja-se o de Portugal, que só foi campeão europeu quando, em vez de um treinador, contratou o padre Fontes. (Estou a brincar, claro, o padre Fontes nunca trabalhou para a FPF). Para atenuar os meus receios li uma notícia que dava conta da evolução da federação portuguesa ao longo dos anos. O jornal Record falava da preocupação da equipa técnica portuguesa com o estado do relvado em Sochi: “O técnico pisou o tapete verde bem no centro do terreno e passou a ideia de que algo poderia não estar bem.” Há 32 anos, um grupo de excursionistas portugueses por terras mexicanas chegou a treinar num campo inclinado. Agora, temos um treinador-engenheiro que, com expressões de silvicultor, se põe a estudar as condições da flora russa.

Bem, quanto ao jogo, nem os nervos me impediram de ver a nossa entrada de rompante. Tivemos ainda uma grande oportunidade para fazer o 2-0, mas passámos o resto da primeira parte à rabia. Chegar ao grande círculo tornou-se uma quimera, uma espécie de El Dorado de que os antepassados de Ronaldo, Guedes e Companhia tinham ouvido falar mas cuja existência os seus descendentes já não poderiam provar. Conhecem aquelas histórias do gémeo bom e do gémeo mau separados à nascença? São Diego Costa e Pepe, só que aqui ambos os gémeos são maus. O brasileiro naturalizado espanhol ultrapassou o brasileiro naturalizado português com um golpe de que este se queixou mas que intimamente terá aplaudido, e marcou um golo usando José Fonte como pino.

Neste período crítico, a densidade populacional no meio-campo de Espanha era semelhante à das Ilhas Selvagens e, para o comprovar, quase no final da primeira parte, De Gea revelou-se tão útil a defender a baliza de Espanha como uma cagarra. O espírito de Loris Karius desceu sobre o guardião e, a ler muito devagarinho e a escrever muito torto, Portugal chegou ao intervalo a ganhar (afinal, como é que fomos campeões europeus? A jogar bem é que não foi.) Na segunda parte, a Espanha, com dois golos atípicos, passou para a frente do jogo e os jogadores portugueses rescindiram contrato com a bola alegando justa causa por falta de contacto físico e visual. A perder, Fernando Santos olhou para o banco à procura de Éder. Não o encontrando, lançou João Mário. Depois, entrou Quaresma, que cumpriu na íntegra as indicações do treinador: fez um remate de trivela, ameaçou um apanha-bolas russo e insultou o árbitro. Por esta altura, já todos nos tínhamos esquecido, e os espanhóis também, que Cristiano Ronaldo continuava em campo. Quando ele pegou na bola para marcar o livre lembrei-me das dezenas de livres que já o vi marcar em desespero de causa, mais em força do que em jeito, e ele, só para me contrariar, marcou o melhor livre da carreira na categoria mais em jeito do que em força. Dá gosto ser contrariado assim. Afinal, bates mesmo bem, Ronaldo.