Há dias, numa cidade do Colorado, um sujeito armado entrou numa discoteca gay, matou cinco pessoas e feriu dezoito. O acontecimento tinha tudo para excitar os “media”, que à questão do controlo das armas podiam acrescentar o “crime de ódio”, protagonizado pelo típico fanático de extrema-direita, motivado pela “homofobia”, o “fascismo”, o “trumpismo”, o “divisionismo”, o “racismo”, a “supremacia branca” e a reacção conservadora ao avanço das políticas “identitárias”. As redes sociais já acendiam fogueiras e preparavam a festança. Estava a caminho um drama nacional, quiçá global.
Infelizmente, os advogados do homicida tornaram pública a informação de que este se diz “não-binário” e que atende pelos pronomes “they/them”. Ou seja, que em princípio integra a popular “comunidade” LGBTPlus. Num ápice, a maioria dos “media” moderou o assunto quase ao ponto do sumiço. Quanto às redes sociais, e a uma minoria rija dos “media”, aproveitaram as fogueiras entretanto acesas para, inabaláveis, prosseguir o berreiro contra a “homofobia”, o “fascismo”, o “trumpismo”, etc. E para colocar em causa que o assassino seja de facto aquilo que diz ser.
Aqui é que a história começa a ficar interessante. O primeiro mandamento nas Novas Tábuas da Lei ordena: “Nunca duvidarás da forma pela qual um indivíduo se identifica, ou do género que adopta, opções que respeitarás cega e inequivocamente”. Sucede que, no caso do homicida do Colorado, houve quem desatasse a duvidar. Para inúmeros simpatizantes da “causa” LGTBExtra, o homicida é mentiroso e os advogados do homicida são mentirosos. Dando voz aos gritos de milhares de anónimos, uma transsexual convidada pela CNN diz que viu imagens e concluiu de imediato tratar-se de um homem, e dos “binários”.
Não sei se a tal transsexual da CNN também não seria apenas um moço com peruca. Sei que, a partir do instante em que se manda às malvas o direito à “auto-identificação” de acordo com interesses circunstanciais, a arbitrariedade do exercício é exibida às claras. Urge, pois, reescrever o primeiro mandamento: “Nunca duvidarás da forma pela qual um indivíduo se identifica, ou do género que adopta, opções que respeitarás cega e inequivocamente, excepto se isso criar engulhos aos delírios que gostamos de espalhar”. De repente, a possibilidade de se poder fingir ser o que não se é torna-se real. E, com uma crueldade que só se conhecia no heteropatriarcado branco, passe o pleonasmo, despacha-se o pobre homicida com os pronomes “he/him”.
O empenho em recusar a alegada escolha do homicida é engraçado. O argumento subjacente tem mais graça: o homicida, garantem, mente para ser beneficiado na Justiça. Vamos admitir que a conversa do “não-binário”, por parte do atirador, é mesmo conversa, como aliás costuma acontecer. O ponto não é o logro, e sim as consequências do logro. A militância LGBT&Cia. reconhece, sem reparar que reconhece, o favorecimento que a sua cultura da vitimização suscita. Tanta lamúria contra o privilégio acabou por produzir peculiares nichos de privilegiados, uma piada cuja “punch line” se perde logo que percebemos o respectivo perigo.
A cartilha “identitária” pode ser primitiva, cómica, infantil e, conforme provam as reacções ao trágico episódio do Colorado, facilmente exposta ao ridículo. É ridículo definir indivíduos segundo traços privados, socialmente irrelevantes e frequentemente inventados. E é de um ridículo maior impor a todos a categorização determinada por cada um. Mas sobretudo a cartilha “identitária” é perigosa, e perigosíssima no estranho universo da propaganda “trans”.
Uma coisa é uma criatura – uma criatura que não sofra de rara disforia de género – imaginar ser o que evidentemente não é, desde um espécime do sexo oposto a um exemplar de espécie diferente, passando por uma personagem de ficção ou um objecto inanimado. Outra coisa é sermos compelidos a participar na farsa, sob pena de acusações de intolerância e, não se riam, “bullying”. Outra coisa ainda é transformar (com trocadilho) a farsa em programa, o programa em lei, a lei em crime, o crime em negócio. O inexplicável subsídio de 1200 dólares mensais que, na semana passada, a cidade de São Francisco entendeu distribuir entre uma quantidade por enquanto reduzida de transsexuais é praticamente um gesto inócuo, se comparado com a mutilação hormonal e física de menores de idade. Nos EUA e no Canadá, milhares de meninos e meninas que anteontem acharam “giro” declararem-se meninas e meninos são hoje submetidos a “tratamentos” para uma doença de que não padecem. E há pais, escolas, televisões, médicos e autoridades que, excitados por dinheiro, ideologia ou distúrbio mental, incentivam e patrocinam a atrocidade.
Por cá, estamos nos primórdios de tamanho impulso civilizacional. Temos partidos mortinhos por trocar o sexo de fedelhos. Temos escolas com casas de banho à vontade do freguês. Temos um hospital público com “redução do tempo de espera das intervenções” à “população transgénero”. E teremos a proposta do Livre, que agora se enfiou no OE e prevê um plano “interseccional” de “formação” em “direitos humanos” aos funcionários públicos. E que inclui uma atenção natural aos “conteúdos” sobre “pertença étnica”, “multiculturalidade” e, não falha, “LGBT”, com peso enorme do “T”. Às sumidades que aprovaram isto, a AR em peso com o voto contra do Chega e a abstenção do PSD, não ocorre a fundamentação nula destes “avanços”, não ocorre que os cidadãos são iguais perante o Estado, e não ocorre que a discriminação, negativa ou positiva, é sempre negativa para alguém. Ou ocorre, o que é bem pior. Dividir para reinar, hierarquizar para oprimir.
Até ver, do circo de horrores montado nos enclaves “progressistas” da América do Norte separa-nos o espaço do oceano e o tempo da periferia que somos. Mas a coisa faz-se. No que toca à importação de demências, os portugueses são submissos. Embora não se identifiquem assim.