Estreou na Netflix o novo espectáculo de stand up de Ricky Gervais, “SuperNature”. A data? 24 de Maio. A hora? Cerca de 10 minutos antes de alguém recortar o pedaço em que ele goza com os transsexuais, publicá-lo nas “redes sociais” e a internet rebentar de raiva. O programa tem graça. O pedaço em questão também. Gervais aproveita um facto relativamente antigo, que recentemente virou interdito: ao contrário dos homens, as mulheres não têm pénis. A propósito das “novas mulheres”, as que “têm barba e pila”, uma amostra: “Agora as mais antiquadas dizem: ‘Ai, querem usar as nossas casas de banho’. Por que não poderiam usar as vossas casas de banho? ‘Porque são para mulheres’. Elas são mulheres – vejam os seus pronomes! Há alguma coisa nesta pessoa que não seja de senhora? ‘Bem, o pénis dele.’ DELA, seu preconceituoso! ‘E se ele me violar?’ Se ELA te violar!

Fazer boa comédia nunca foi tão fácil. Por dois grandes motivos. O primeiro é que o guião já chega pronto. O diálogo simulado acima é completamente plausível. Gervais não inventa nada. O movimento woke em geral e as “políticas identitárias” em particular são ridículos o suficiente para dispensar adornos. Há mesmo quem defenda que o sexo (ou o “género”, no jargão em voga) não depende dos órgãos reprodutivos mas da convicção individual. Notem que não digo que um sujeito não possa preferir ser mulher, ou sentir-se mulher, ou tentar parecer-se anatomicamente com uma mulher. Digo que isso não invalida um pormenor, pueril ainda há meia dúzia de anos: o sujeito continua a não ser uma mulher. E teimar no contrário é, além de um acto primitivo e uma negação cega dos conhecimentos científicos básicos, engraçado.

Um princípio similar leva a que, para lá do sexo oposto, seres humanos se “assumam” como animais, personagens de ficção ou objectos inanimados. Basta mudar o pronome, a farpela e os derradeiros vínculos à realidade. Desde que ninguém se “assuma” como membro de uma etnia diferente da biológica, a biologia que lixe: o fundamental é a criatura estar bem “consigo própria”. Eu, por exemplo, apenas estarei bem “comigo próprio” quando romper com as amarras da naturalidade e até da singularidade e me definir enquanto dezassete polacos. Lá para terça ou quarta-feira tenciono meter a papelada no registo civil (o pronome será “tamte”, “aqueles” em polaco).

O segundo grande motivo pelo qual a boa comédia nunca foi tão fácil é que hoje temos dois pretextos de galhofa. Achamos graça quando o comediante conta a piada e achamos graça quando a ira dos taradinhos do Twitter se ergue contra o comediante. Se nos alhearmos das componentes fascista e inquisitorial, a indignação woke é divertidíssima. No caso de Gervais, como de resto acontece com frequência, as dezenas de milhares de “posts” furiosos não o acusam de distorcer o evangelho “identitário” para efeitos de enxovalho, o que, repito, ele não faz nem precisa de fazer. A fúria dessa gente advém justamente do facto de o artista britânico se limitar a transcrever os “argumentos” em jogo. E se há coisa que os fanáticos não toleram é que as suas posições absurdas e totalitárias alimentem a paródia alheia.

Curiosamente ou não, apesar das abébias não me lembro de o humor andar tanto pelas ruas da amargura. Excepções, cada vez mais excepcionais, à parte, a comédia actual é uma tristeza – e o paradoxo não é fortuito. Há meses vi uma rábula do “Saturday Night Live” em que, eu fique ceguinho, se gozava com os cépticos das políticas a pretexto da Covid. De Lenny Bruce e George Carlin, que nestes tempos seriam perigosos “negacionistas” e “homofóbicos”, saltou-se, com umas escalas decentes pelo meio, para a defesa amestrada dos governos de esquerda e das tresloucadas “causas” da esquerda. Nos delírios woke não se toca, a menos que para pregar a “tolerância”, a “diversidade” e a “inclusão”. E se se tocar, arrisca-se o “cancelamento”, que é o eufemismo em vigor para difamação, perseguição e censura. Se forem ricos e influentes o bastante, alguns profissionais, como Gervais, Dave Chappelle e Bill Burr, insistem em resistir ao ódio. Outros, como Kevin Hart, cedem-lhe (ao que me constou). Um terceiro e selecto grupo, que inclui Louis C. K. ou Woody Allen, não escapou à fogueira. A vasta maioria, leia-se os que lutam por uma carreira, não tem hipótese. Em “SuperNature”, Gervais fala dos novatos que, nos clubes de “stand up”, assinam termos de responsabilidade em que se comprometem a não ofender “minorias”.

Eis o ponto: as “minorias”, ou essencialmente os “activistas” que ganham a vida à custa delas, não admitem ser ofendidas (embora admitam ofender). Dado que o humor implica com frequência a ofensa, os “activistas” não admitem o humor. Dado que o humor exige liberdade, os “activistas” não admitem a liberdade. Aliás, esqueçam as minudências, que o verdadeiro ponto é o seguinte: o movimento woke integra-se numa vasta ofensiva contra a liberdade, e a favor da instauração de um mundo minado e sombrio, que reduz os sujeitos a sombras ordeiras e as relações à chantagem implícita. Idealmente, não seríamos pessoas, e sim – aqui não há acasos – máscaras. É por isso que a comédia, a autêntica e subversiva (passe a redundância), é um dos obstáculos e um dos alvos. É por isso que é fundamental a sobrevivência do riso, um estremecimento que nos ajuda a manter livres e humanos. É por isso que essa é a resposta adequada à “ideologia de género” e peçonhas similares: rir, que só não é o melhor remédio porque o fanatismo não tem cura.

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