Quando se aborda o assunto das casas para a classe média é difícil puxar pela imaginação das pessoas para que elas atravessem a sopa turva de clichés e modelos errados que os sábios lhes plantaram nas cabeças. Convém mostrar-lhes um caso diferente. O Bairro das Estacas, em Lisboa, fica perto da Avenida de Roma, junto à linha do combóio, onde era o antigo cinema King e onde ainda hoje existe o Teatro Maria Matos. Freguesia de Alvalade. Concentra uma série de exemplos do que se fez bem e do que não se deve fazer. É um bairro especial de arquitectura modernista, formado por blocos paralelos de edifícios perpendiculares à estrada, de modo a abrir o quarteirão e construir jardins entre os blocos. Esta ideia veio contrariar o costume de implantar os edifícios ao longo do perímetro do lote, deixando logradouros privativos encerrados na parte central. Além disso, os edifícios do Bairro das Estacas são elevados em pilotis, ou seja, assentes numa grelha de pilares intercalados com lojas e com os acessos ao interior dos prédios. O piso térreo maioritariamente vazado liberta o solo e dá ao bairro uma grande permeabilidade pedonal. A arquitectura do conjunto é de Ruy Athouguia e Sebastião Formozinho Sanchez, e os jardins são um dos primeiros projectos de Gonçalo Ribeiro Telles. Foi considerado concluído em 1951 e recebeu o Prémio Municipal de Arquitectura em 1954.
Sobre ele ainda não apontei o mais importante: o Bairro das Estacas foi construído para a classe média, como habitação económica de promoção pública estatal. Chamava-se, naquela altura, Bairro de Habitações Económicas de São João de Deus. Se fosse hoje, não era possível aquela construção pela quantidade de regras a que desobedece. É o regulamento acústico, já que se ouvem nitidamente as conversas nos outros apartamentos; são as acessibilidades, e as medidas das zonas comuns, as larguras dos acessos e das bombas das escadas; é a sacrossanta eficiência energética, apesar do desenho original já incluir quebra-luzes na fachadas poente para controlar a incidência solar, e prever outros sistemas passivos que a lei actual praticamente impede de introduzir nos cálculos, como a própria massa das paredes. Em todos estes capítulos da nossa infernal regulamentação, o Bairro das Estacas desobedece às regras e ainda bem. Só assim é possível construir mais barato. Com tal qualidade que hoje toda a gente quer lá viver, sobretudo os arquitectos. E agora o conjunto está em vias de classificação – por iniciativa da Direcção Geral do Património Cultural. Mas o mais relevante é isto: hoje as regras não deixariam construir o Bairro das Estacas, pelo menos tal como está e para aquelas pessoas. Hoje as regras obrigatórias encarecem brutalmente a construção. Só permitem construir casas de luxo.
Por estar em vias de classificação, começaram os problemas. Um edifício classificado traz obrigações e reduz os direitos de propriedade (que as pseudo compensações fiscais não compensam). De maneira que apareceram por ali romagens de puristas, câmara fotográfica pendurada ao pescoço, e camisa abotoada até à garganta, apostados em obrigar as pessoas a fazer obras para voltar ao desenho original. São mais de 240 apartamentos. Com o tempo, as casas foram sendo vendidas e alugadas. Desde 1951, a vida mudou e as pessoas foram adaptando as casas ao seu modo de vida. Algumas fecharam as varandas, ou parte delas, para ganhar espaço. São as famosas marquises. Muitas destas pessoas (a maior parte?) já compraram as casas com as marquises fechadas. O que não constitui uma tragédia, sobretudo naquele tipo de arquitectura, que suporta bem um traçado de painéis abertos e outros fechados. O importante é serem bem feitas. E os poderes públicos, em vez de massacrarem as pessoas à mais pequena mudança, à mais compreensível e legítima adaptação, podem e devem ajudá-las a desenhar e legalizar as marquises.
De resto, é importante que os governantes decidam sobre quem deve morar ali: querem ter famílias ou querem diletantes? Porque transformar aquele bairro em habitat exclusivo para diletantes é uma perversão da natureza original do conjunto, pensado e construído para famílias da classe média. Ficam com o desenho de origem, mas mudam a composição social. Parece que aquelas pessoas afinal já não servem. A moral desta história é que o Bairro das Estacas mostra um exemplo de boa qualidade e construção mais barata, acessível aos orçamentos da classe média. E com a falta de casas em Lisboa para a classe média, os poderes públicos não se podem dar ao luxo de infernizar a vida a quem mora ali.