O Dr. Fernando Medina não é uma voz independente. Longe disso. E porque não é uma voz independente, sendo um alto quadro do PS e presidente da Câmara Municipal de Lisboa, as recentes críticas que formulou à actuação do Ministério da Saúde, usando o espaço de sinecura mediática que possui, merecem ser bem digeridas. Nada do que o Dr. Fernando Medina diz é irrelevante. Por isso, as suas recentes e pertinentes afirmações suscitam observações.

Transcrevo o que li num jornal:

“Com maus chefes e pouco exército não é possível ganhar esta guerra”, afirmou. “É uma nota direta a todos os responsáveis relativamente a esta matéria, que é preciso agir rápido. Ou há capacidade de conter isto rápido ou então têm de ser colocadas as pessoas certas nos sítios certos”, disse.

Levantada a torrente de conspirações, teóricas ou reais, de supostos recados por interposta pessoa e as intercorrências de contra-respostas ministeriais e diretoriais, chegámos à cristalização do pensamento “Medinano”.

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“Eu fui muito claro nas declarações que fiz. Referi-me específica e circunscritamente às chefias de âmbito regional e à equipa que está hoje no terreno, de âmbito regional”.

Ficou resolvido o assunto. O Dr. Medina não queria criticar ninguém que não fosse a ARS de Lisboa e Vale do Tejo e uns técnicos, não identificados, da equipa de saúde pública que anda a tentar apagar os fogos que a política não deixou apagar. Não tinha atacado a DGS e, muito menos, a Senhora Ministra da Saúde. A Dra. Marta Temido não tinha que temer má-fé.

Primeira observação

Criticar decisões de uma direcção-geral, neste caso a da Saúde (DGS), não exonera o Governo de responsabilidades.

O poder executivo é do Governo e se a DGS faz é porque o Governo a deixa fazer. Se a DGS propõe e o Governo manda fazer, a responsabilidade é do Governo. Logo, Medina, tendo percebido isso, foi atrás da Administração Regional da Saúde (ARS). Só que se esqueceu de que a ARS é, em termos práticos, uma direcção-geral, das mais políticas que existem. O Prof. Correia de Campos costumava dizer que o presidente da ARS é o Ministro da Saúde da região. Portanto, quando se quer criticar o Governo, o que é obviamente lícito desde que se tenha uma base factual que sustente a crítica, façam-no sem alvo intermediário. Isto também é válido para a oposição.

Segunda observação

Não se deve desdenhar uma opinião só por ter sido formulada por alguém de quem não gostamos ou percebemos como rival.

Há uns dias, o Dr. Salvador Malheiro disse, com a elegância verbal que lhe reconhecemos, que não percebia porque não se faziam cercas sanitárias em Lisboa, depois de as terem feito, acertadamente, em “Óbaar”. O Dr. Medina lá lhe caiu em cima, com o peso de Lisboa, e não poupou o Senhor presidente da Câmara Municipal de “Ôvar” a comentários sobre uma hipotética vontade para aparecer na TV. Cá está, para ele, Dr. Fernando Medina que já adotou o sotaque da capital, ter espaço próprio e semanal na TVI não tem importância. O Dr. Malheiro fazer um comentário, muito lógico, já é sede de protagonismo.

Na fase em que estamos, com a epidemia nacional de Covid-19 em aceleração e longe de estar contida, todas as ideias podem ser válidas até serem escalpelizadas. Quem quer destratar uma opinião tem de ter a humildade de escutar, refletir e só depois descartar hipóteses. Não pode reagir na hora, emocionalmente. Os presidentes das câmaras têm muito a aprender com a partilha das experiências que cada um viveu. O Dr. Salvador Malheiro estava errado na forma, na dimensão e na razão que usou para defender a instalação de cercas sanitárias em Lisboa. Não se tratava de ter pesos e medidas diferentes. Mas justificava-se, e ainda se justifica, aplicar a medida de quarentena a grupos de pessoas, com o peso certo, quando as condições o exigirem, sem considerações que não sejam as da protecção sanitária das populações. Lido assim, o presidente da Câmara de Ovar, com a sua vivência experiencial, tinha toda a razão.

Pode haver, há mesmo, necessidade de promover momentos de confinamento parcial, de prédios, ruas, bairros, freguesias ou municípios, com a flexibilidade que a epidemiologia exigir. Suspeito que nunca mais voltará a acontecer em Portugal, mas o retorno a quarentenas territoriais tem sido feito em vários países, desde logo na China e agora em Espanha.

Terceira observação

“Em casa onde não há pão, todos gritam e ninguém tem razão”. Pior quando há chefes a mais e responsáveis a menos.

O Dr. Fernando Medina, antes do seu assombroso recuo, teceu considerações sobre a falta de meios e incompetência das chefias. Concordo que não se tem feito alocação de recursos em função de prioridades. Por exemplo, tem sido usado todo o potencial de trabalho da Medicina geral e familiar nas tarefas de apoio à saúde pública?

Quanto às chefias, não sei. Conheço uma parte significativa de quem dirige a saúde pública em Portugal e só tenho elogios para dispensar a quem está no terreno. A falta de meios é mesmo muito grande, a muitos níveis, e não é possível ter andado a louvar a “primeira parte” – a do “confinamento” – para vir criticar a segunda – a do “desconfinamento”, jogada com os mesmos atores.

A actuação das autoridades sanitárias tem tido “comandos” excessivos e conflituantes. A falta de flexibilidade e de adaptação às realidades locais da epidemia em Portugal ensina-nos que o modelo de governança da saúde pública em Portugal tem de ser mudado. Para que servem os membros do Governo coordenadores regionais? Vão-se nomeando gabinetes de crise e comissões várias, mas isso não resolve o essencial. Governanças ad hoc?

(A observação seguinte também se pode aplicar a muito do que escrevo. O importante é nunca o esquecer. A única forma de não incorrer em “falar de cor” é ler, ouvir e observar. Como um dos meus mais queridos Mestres em Medicina me ensinou, “nunca saltes para a piscina sem saber se tem água”.)

Quarta observação

Não se pode ser prematuro nos elogios ou nas críticas, em especial quando não se conhece completamente o assunto de que se fala.

Portugal não foi “brilhante” no confinamento. O Ministério da Saúde fez o que tinha de fazer por não ter sido capaz, como na generalidade dos países ocidentais, de prevenir o alastramento da epidemia. Nem tudo foi mau, mas… Reagiu tarde, demasiado tarde. Usou, muitas vezes mal, a informação de que dispunha, mas teve uma enorme falta de iniciativa e capacidade de improvisação. Foi sempre atrás do prejuízo. Não aplicou quarentenas individuais no início da epidemia (continua a faltar legislação que o permita), não se precaveu em termos de desinfectantes e máscaras, passou mensagens erráticas e incoerentes, seguiu cegamente a OMS, produziu normas demasiado longas e tardias, encerrou o SNS sem antecipar o impacto da redução drástica da actividade assistencial normal e ainda não percebeu a dimensão real do desastre que criou. Lembram-se da cena do elevador no edifício da DGS? Todos sem máscara, Ministra, directora-geral e circunstantes, com costas voltadas para o centro, no seu cantinho? No princípio foi tudo levado a “brincar”. Preferiu-se o espectáculo à eficiência.

Os problemas que estamos a ter no desconfinamento resultam de que o confinamento não foi o êxito que se diz ter sido. Pelo menos na dimensão que se apregoa. Houve, e ainda há, excesso de tomada de decisões em contexto de ausência de informação. Usa-se informação alternativa mas tem faltado o bom senso para a processar. Desconfinou-se precocemente? Talvez, mas a questão é que ao desconfinar dever-se-ia, como escrevi anteriormente, ter previsto a possibilidade de quarentenas locais “a la carte”. Fizeram testes para não tirar as conclusões sanitárias consequentes.

Quinta observação

Medidas para a comunicação social geralmente são dispendiosas e inúteis.

Em 6 de junho a Senhora Ministra dizia o seguinte:

“Temos promovido o rastreio prioritário e intensivo da infeção por SARS-CoV-2 nestes concelhos, atividades e pessoas. Em pouco mais de cinco dias realizámos cerca de 14 mil colheitas de amostras biológicas.

O caso dos surtos em lares, onde supostamente todos os utentes tinham sido recentemente testados, mostra bem como testar, sem mais medidas, tem um impacto profilático nulo. Testar não é prevenção primária. A utilidade dos testes só se manifesta se houver como separar os infetados antes de eles serem infetantes. Nem sequer é verdade que todos os suspeitos sejam testados 24h depois de sinalizados, longe disso. Tenho doentes que foram notificados para a saúde pública local, depois de poderem ter tido contactos, e esperaram dias, vários dias, até serem convocados para teste. O enfoque deve estar, além de medidas de quarentena por áreas geográficas, nas medidas de proteção individual. As máscaras deveriam ser obrigatórias e não máscaras ou viseiras. Mas a verdade é que há quem furte desinfetante, como se viu no caso do Metro do Porto. Assim, com o elevado civismo demonstrado por estes e outros que persistem em ajuntar-se, será sempre mais difícil. Tal como será difícil enquanto se avaliar a utilização dos transportes públicos por médias diárias e não por picos de ocupação do espaço que, sublinhe-se, é sempre misteriosamente menos apertado na cabeça dos ministros do que no corpo dos passageiros.

Sexta observação

Precisamos de oposição política no parlamento.

Louvar a senhora Ministra na Comissão de Saúde, apenas saudar o que tem sido feito, reconhecer incapacidade para fazer melhor, admitir não perceber nada de pandemias, aceitar saber pouco de saúde pública, não apresentar alternativas para a condução da política de saúde e de combate à pandemia, criticar a administração pública exonerando o Governo das suas monumentais falhas, até pode ser honesto, uma estratégia possível, mas não ajuda Portugal.

Observação final

Agarrem-se e ponham o cinto. A segunda vaga será no inverno. Ainda estamos só com um segundo pico da primeira onda pandémica, a tal que não desapareceu. Com vírus não há milagres.