Durante os tempos socráticos escrevi várias vezes, em blogues, que a pior herança daquela idade negra não seriam as consequências económicas mas a degradação moral da política. Depois veio 2011, a intervenção da troika by PS, uma crise e um período de ajustamento muito duros – e mantive a opinião que a decadência moral provocada pelos governos socráticos era mais daninha do que a crise económica.
Eram as mentiras constantes, os ataques descabelados aos opositores políticos, a ameaça e a intimidação de quem não se vergava, a má criação na Assembleia da República (não foi Costa que inaugurou o hábito), os esquemas manhosos das casinhas e da licenciatura e do Freeport que os media iam, a medo, apresentando, as explicações delirantes para os problemas prementes – lembro-me de uma entrevista de Sócrates na RTP explicando vigorosamente que o aumento da dívida pública se devia ao aumento do preço de petróleo. Cinco minutos de tal ambiente e qualquer pessoa funcional concluía que a única estratégia de sobrevivência era viciar-se em opiáceos.
Sabe-se o resto da história. António Costa, personificação do cúmulo da falta de vergonha, fez uma campanha eleitoral tentando, sem subtileza, reabilitar o socratismo. Perdeu nos votos, claro, mas não aprendeu. O governo que formou a seguir foi buscar numerosos ministros e secretários de estado muito distraídos que trabalharam com Sócrates.
Percebeu-se que o PS não estava virado para introspeções. Na parte financeira o desgoverno Costa bem tentou a bravata de por a União Europeia na ordem. Mas foi-lhe indicado o seu lugar, amochou, Mário Centeno quis cuidar do seu prestígio internacional para poder ter carreira frutuosa depois da experiência governativa, com sorte estamos protegidos dos desvarios despesistas que estão no ADN do PS.
Contudo, como a EU não quer saber se somos governados por valdevinos desde que os valdevinos não sejam excessivamente despesistas, lá temos um governo cheio de gente que não vislumbrou nada de estranho nas políticas de José Sócrates ou, sabemos agora (e virá mais?), de Manuel Pinho.
É que se Manuel Pinho recebeu continuamente da família Espírito Santo enquanto foi ministro, terá sido certamente para patrocinar políticas que, em vez do interesse comum, defendiam a família Espírito Santo (ou parte dela). Se José Sócrates recebia presentes caros (em forma de férias para si, família e derivados) de pessoas beneficiadas pela sua política de obras públicas, uso de golden shares, da gestão do banco público e de diplomacia económica, bom, terá sido porque, em vez de promover o bem comum, promovia o sucesso financeiro destas pessoas.
Os atuais ministros de Costa – e mais António Costa, o líder dos ceguetas voluntários – além de não estranharem gastos privados de Sócrates não justificados por rendimentos conhecidos nem pela inexistente fortuna da mãe, também não suspeitaram que as decisões políticas de Sócrates e de Pinho estavam mais na linha de interesses privados do que do bem comum. São, portanto, pessoas bastante descuidadas na hora de avaliar e perceber a realidade, bem como o impacto das políticas públicas.
É esta estirpe de pessoas que temos no governo. Ou são de compreensão limitada ou limitam-na voluntariamente. Não espanta que, da parte do PS e opinadores satélites, todos finjam que Sócrates não tem nada a ver com o partido, à justiça o que é da justiça, as pessoas têm direito à presunção de inocência (como se isto não fosse meramente um conceito para os tribunais, mas uma imposição à atividade cerebral dos portugueses), e mais tretas e mais tretas.
Arons de Carvalho rebolou até numa sargeta e afirmou que um ex-primeiro-ministro viver de empréstimos de alguém que fez negócio com os seus governos é matéria em que não vislumbra nem cinzentos nem negros. É atuação própria do melhor dos mundos.
Faltam as palavras para qualificar estas pessoas, cúmplices da podridão moral do tempo de Sócrates mas que, lampeiras, saltitam por aí tentando ares de gente impoluta. Têm sucesso, claro. É Portugal e não somos conhecidos por grandes exigências no escrutínio democrático. E o charco moral tem destas coisas: habituamo-nos e passamos a ver o escândalo indecoroso como normal.
No meio disto, confesso que uma audição a Manuel Pinho é um folclore que se devia evitar. Para quê? Para o PS, desta vez, se fingir muito indignado com a possível corrupção? O BE, cínico que dói – alguém se lembra de indignações de relevo bloquistas pela acusação contra Sócrates? A mim escaparam-me – quer uma comissão de inquérito para lá misturar governos do PSD-CDS. Não, obrigada.
Querem mostrar serviço? Tratem de recuperar a legislação contra o enriquecimento ilícito. Inicialmente fui contra esta medida, mas reconheço que é necessária. O PSD, com Paula Teixeira da Cruz, teve a ideia cintilante de aplicar a mesma bitola a todos os cidadãos, em vez de só aos políticos – esperando que, como sucedeu, lei tão abusiva fosse inconstitucional.
Há que redigir uma lei, dirigida a políticos e altos funcionários públicos (quem necessita de vigilância acrescida), que permita acusar os prevaricadores em se detetando estilos de vida não consonantes com os rendimentos declarados. De caminho, criminalizem-se presentes, empréstimos, liberalidades (acima de valor parcimonioso) entre ex-governantes e os que beneficiaram da sua governação, aí por dez anos. Espero não estilhaçar o coração de ninguém, mas empresários e políticos não costumam ser cordeirinhos que oferecem uns aos outros largos milhares de euros movidos somente pelo mais cristalino e desinteressado amor ao próximo.
Só com circo parlamentar (tristemente abundante) e com a consciencialização dos eleitores de que devem penalizar com o voto os partidos cúmplices da corrupção (infelizmente escassa), não vamos lá.