1 Um dos vários factores que conduziram ao sucesso da Aliança Democrática para uma Nova Maioria (AD), em 1979 e 1980, teve que ver com a forma como os vários elementos que a compunham compreenderam o espaço político que tinham por explorar e com a opção tomada na relação desse espaço com os outros à sua volta. A conquista de individualidades mais ligadas à esquerda democrática, como Medeiros Ferreira, Vasco Pulido Valente, António Barreto ou Francisco Sousa Tavares, ajudou a alargar o seu campo de actuação política, mas é inegável que a forma como a AD se relacionou com os sectores mais à direita teve igual ou maior influência na conquista das duas primeiras maiorias absolutas da democracia.

O CDS tinha estado, pouco tempo antes, no Governo, em coligação com o PS de Mário Soares. Assistiu, graças a isso, a uma erosão do seu capital social junto de um eleitorado de direita que, por sua vez, tinha soluções políticas por explorar no PDC, de Sanches Osório, ou no MIRN, de Kaúlza de Arriaga. Freitas do Amaral até podia alegar, como alegou, que este último não constituía uma ameaça ao CDS, mas a verdade é que o risco de perda dos centristas para os partidos mais à direita foi sentido como real. E no 3.º Congresso, realizado em Dezembro de 1978, o CDS fez o que ficou conhecido como uma «viragem à direita», nomeadamente através da indicação de Francisco Lucas Pires como vice-presidente. Esta acabou por ser a solução encontrada como forma de salvaguardar o peso eleitoral do partido, rejeitando, ao mesmo tempo, fusões ponderadas com o PDC ou com o MIRN.

O surgimento da AD, em 5 de Julho de 1979, e a integração do CDS naquela aliança foi vista pela nova ala direita deste partido como consequência natural da viragem política do 3.º Congresso. O próprio Lucas Pires compreendeu o que estava ali em causa e deixou-o bem explícito numa entrevista ao jornal Tempo, a 9 de Agosto de 1979: «A batalha da direita não se pode travar ao mesmo tempo que a batalha do centro-direita, sob pena de as duas se derrotarem reciprocamente perante a esquerda, uma à outra. (…) Suponho, por isso, que não há interesse em que as pessoas que gostariam de votar à direita dispersem o seu voto por mais organizações.» Outro dirigente da ala direita do partido, Rui de Oliveira, foi ainda mais claro, numa entrevista ao mesmo Tempo, a 23 de Agosto: «Todos os nossos concidadãos que defendem os princípios da direita democrática encontram o seu espaço entre nós. Ao MIRN ficarão destinados todos os radicais como convém a um partido de extrema-direita.»

Enquanto Sá Carneiro percebia que o PSD tinha de romper definitivamente com as suas derivas marxistas ou proto-marxistas (com o grupo de Sá Borges, Emídio Guerreiro, etc.), o CDS compreendia, por seu turno, que tinha grande interesse em alargar a sua base de apoio à direita, a qual, por sua vez, dentro do quadro da AD, podia contribuir para a formação de uma maioria absoluta não socialista. Nesse caminho foi essencial a abertura a personalidades concretas mais relacionadas ou mesmo vindas directamente das direitas extraparlamentares de então; a adopção vincada e não titubeante de temas caros às direitas sociológicas (a liberdade económica, a iniciativa privada, o combate ao militarismo do regime, à corrupção, ao colectivismo e até na luta contra o Presidente da República de então); a forma como se reagiu agressivamente aos ataques vindos das direitas extra-AD. E conseguiu, com isso, fazer vencer a ideia de que cada voto numa direita de mero protesto e radicalizada era um voto inútil: não servia o país, na medida em que a dispersão de votos favorecia as esquerdas e a hegemonização do PS como partido de Governo, e o voto útil, capaz de representar uma alteração concreta no caminho das políticas públicas do país, recaía exclusivamente na AD.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O espaço político da AD existia e a maioria do país demonstrou a sua existência com as maiorias absolutas de 1979 e 1980 – esse espaço ia de Medeiros Ferreira a Lucas Pires, da social-democracia não colectivista ao campo da direita democrática liberal, passando por conservadores ou democratas-cristãos.

2 A AD representou, de facto, a concretização de um projecto de natureza agregadora que, apesar de ter falhado após a morte de Sá Carneiro, se continuou a revelar necessária nos anos seguintes e permanece ainda hoje um imperativo de resolução dos impasses da política nacional. E resultou porque correspondeu à materialização táctica de uma ideia partilhada acerca do país que os seus líderes tinham e que encontrava eco em largos sectores da sociedade. Sucede que esse espaço político se mantém, apesar de se ter desagregado partidariamente – de tal forma que, hoje, se consubstancia em mera disputa entre vários derrotados anunciados (PSD, IL e, até, o defunto CDS), em lugar de representar uma ampla federação polarizadora face a nova hegemonia do PS.

O Chega é, no actual contexto, uma excrescência. É também herdeiro da AD agregadora, reformista e liberal, na medida da sua abrangência, e por isso recebe eleitorado natural e clássico da direita «estabelecida»; representa um certo tipo de revanchismo das direitas radicais que ficaram de fora do quadro parlamentar, animadas por experiências bem sucedidas noutros países; e resulta ainda de um estado de degradação política a que se foram deitando, por razões diferentes, quer o PSD, quer o CDS, que tem sabido aproveitar com inegável sucesso.

Mas, tal como em 1979, a questão mantém-se: qual seria a utilidade de oferecer um voto ao Chega se houvesse uma alternativa forte e inequívoca ao PS? Dirão alguns mais crédulos que o Chega faz parte dessa alternativa. Não faz. O protesto não é uma alternativa, mas uma espécie de saco de boxe político que se usa quando não existe alternativa alguma. E é aí que reside a ideia, quanto a mim errada, de que não é possível formar um Governo não socialista sem o Chega: na ausência de alternativa liderante ao PS, no vazio a que o PSD deitou um espaço que, sendo devidamente ocupado, continua a poder valer uma maioria absoluta.

O facto é que, sendo o Chega dotado de toda a legitimidade democrática, a AD (ou o conceito de AD) deixou de lado a ambição de colocar o Chega em situação de ser dispensável, de ser considerado o voto inútil, como fizeram em 1979. Não porque não o seja, mas porque todos os votos à direita se tornaram inúteis (na medida em que não representam alternativa substantiva) e porque foi o PSD, o CDS e até Marcelo Rebelo de Sousa quem deixou gerar a ideia de que o Chega já não é o MIRN de 79, mas um partido com direito a entrar no quadro governativo.

Essa inabilidade ficou muito clara quando PSD e CDS optaram pela solução política implementada nos Açores nas últimas legislativas regionais. Existia, apesar de tudo, uma solução diferente que podia ter oferecido maiores ganhos. Tendo o PS ganho as eleições, mas não tendo maioria parlamentar, PSD e CDS podiam ter feito o que exigiram ao PS nas legislativas de 2015, isto é, que fosse o partido mais votado a ser chamado para formar Governo. E a partir daí jogavam com as armas que o PS lhes deu também em 2015: se o Governo socialista fosse chumbado no parlamento açoriano, PSD e CDS podiam apresentar uma solução alternativa, sem formalizar um acordo com o Chega. E caberia aí ao partido de André Ventura decidir se preferia viabilizar um Governo do PS ou um do PSD e do CDS (com o PPM). Uma mensagem dessas teria feito transportar para o campo nacional uma ideia muito clara e, acredito, com ganhos consideráveis em termos eleitorais no futuro: que a direita clássica recusava o radicalismo (mesmo que depois ela própria se radicalizasse um pouco, de forma a ocupar esse espaço), que a política de coligações não oferecia dúvidas aos eleitores, que, ao contrário do que o PS fizera com o PCP e o BE, havia convicção à direita na necessidade de manter os partidos radicais no arco do protesto e fora do arco da governação, que a regra de que o partido mais votado deve ser chamado a governar, e, mais relevante, que o eleitorado à direita, se quisesse que o PS não formasse novamente Governo, tinha necessariamente de votar no PSD/CDS.

Esta ideia, de resto, ficou bem expressa quando André Ventura afirmou, a dada altura, que não estaria disponível para viabilizar governos nacionais à direita que não o incluíssem. Ora, se o Chega não garantia a viabilização de um governo à direita que não o incluísse, então o Chega estava a viabilizar tacitamente um novo Governo do PS. Eleitoralmente, a mensagem seria claríssima e muito forte.

Mas não foi nada disto que sucedeu, o que se ficou também a dever à actuação do presidente da República, que podia ter forçado uma solução diferente e resolveu tomar o acordo assinado como aceitável (fomentou-o, até). Não era que não fosse aceitável. Mas envolvia danos sérios ao regime, trazendo o Chega para dentro do quadro governativo – e tornando-o hoje, já não o equivalente ao MIRN de 1979, mas a terceira força política no Parlamento. Com efeito, tanto o PSD como o CDS passaram o tempo até às eleições legislativas a hesitar, a ter de ocupar boa parte do seu tempo de antena a justificar a jornalistas a sua posição relativamente ao Chega, a qual, por sua vez, nunca chegou a ficar clara porque não era, de facto, evidente. Ora, com a nova liderança do PSD esse problema manteve-se: Montenegro aceitou, ao que parece, a sua incapacidade de conquistar um grande espaço político, convencendo-se de que o Chega será necessário para formar a maioria que pensa ser ainda possível de alcançar. E o Chega retirará, mais uma vez, desse reconhecimento de incapacidade política os devidos proveitos.

3 O PSD de Rui Rio optou por uma deambulação estranha entre as proclamações social-democratas e centristas e a opção táctica dos Açores. Não contente, pôs ainda em marcha um projecto de purismo político ao partido – de resto, um caminho também escolhido pelo CDS que, sendo mais pequeno, ficou logo em câmara ardente. Mas, no fundo, o problema maior do centro-direita não é táctico. É estratégico e programático. O reconhecimento da necessidade do Chega não é mais do que a assunção de que não há substracto político para oferecer aos eleitores e que é já o PSD que, nesse vazio, precisa do Chega para governar.

O PSD não tinha, e continua sem ter, um programa e uma estratégia política que correspondam a uma cultura, a uma identidade, a uma ideia de país. É hoje uma agremiação que se rege pela sua capacidade de reacção ao PS, tendo deixado de constituir uma forma de acção relativamente ao país. Isso ficou definitivamente evidente com as mais recentes declarações de Luís Montenegro acerca da austeridade do Partido Socialista e com as suas erráticas ideias acerca das «contas certas».

As «contas certas» foram uma vitória política da direita: quase 50 anos depois do 25 de Abril, o PS compreendeu que ter as finanças do país equilibradas não é uma questão ideológica, mas um imperativo moral e de decência de um Estado que deve evitar falências consecutivas. Esta marcha-atrás oferecida pelo PSD deixa o país confuso, na melhor das hipóteses, ou com a certeza, mais provável, de que o maior partido da oposição não é confiável na medida em que não sabe sequer o que pretende.

Ganha a batalha das «contas certas», o PSD devia estar agora apostado em dar o passo em frente em termos de políticas públicas. Mas isso não aconteceu, e provavelmente não acontecerá. Desde a saída de Passos Coelho que o PSD ficou exclusivamente entregue a segundas linhas políticas, mais capatazes do que líderes políticos, que tomaram a dianteira do partido por falta de opções de maior qualidade (eventualmente, Paulo Rangel escaparia a este cenário, mas a derrota interna que voltou a ter frente a Rui Rio deitou por terra, para já, as hipóteses de liderança). Viciado em tecnocracia e pragmatismo, e tornado um alfobre de videirinhos vários, o PSD não representa hoje nada de novo e inspirador: aceitou de bom grado a sua posição secundária face ao PS, apesar da diferença retórica entre Rio e Montenegro. E não compreendeu que os seus problemas já não se resolvem, como acontecia no passado, com mudanças de líder – o seu problema é estrutural e não conjuntural.

Acreditarão os seus dirigentes, julgo, que uma mais que provável nova crise lhes proporcionará a liderança do Governo. Mas numa sociedade como a nossa, em que as pessoas e os seus comportamentos se dividem mais por critérios de classe social do que por critérios de natureza ideológica, é natural que também o eleitorado fixo do centro-direita não se divida, necessariamente, entre liberais e conservadores ou entre moderados e populistas, e que, na presença do vazio, este opte de forma mais clara pela solução que constitui novidade e protesto. O PSD apostou numa mudança táctica quanto ao seu posicionamento face ao PS – o que não significa, por si só, rigorosamente nada; o CDS está ocupado em sobreviver enquanto estrutura orgânica – o que não é grande objectivo político. E a IL parece estar a encurtar o seu campo de crescimento, entre dogmatismos ideológicos e divergências internas que não adivinham nada de grandioso. Estão, no fundo, todos decididos a esperar que o poder lhes caia no colo. E não acredito que isso aconteça facilmente; nesta fase, talvez o PS se arriscasse mesmo a ganhar eleições caso o país voltasse ao fundo do poço. É, mais uma vez, o Chega quem ganha com tudo isto, com perdas consideráveis para o país.

Ora, este profundo vazio político e cultural em que o centro-direita se encontra não é, na verdade, muito diferente daquele em que se encontra o Chega, uma amálgama de descontentes, radicais e deserdados políticos, que se especializou no protesto como razão da sua existência, sem programa e sem filosofia. Mas num cenário em que o vazio é tão grande, é natural que, adivinhando derrotas, o eleitorado à direita permaneça pulverizado e sem amarras eleitorais, e que, com isso, o Chega possa, em breve, disputar o lugar de segundo maior partido com o PSD, na casa dos 20%.

Se a ideia generalizada for ter como alternativa ao PS um partido como o Chega, imagino que tudo esteja, afinal, a correr conforme o esperado. Mas se, pelo contrário, se pretende gerar uma alternativa política, filosófica e cultural aos socialistas, que não passe por um partido quase unipessoal, também reactivo e não activo, sem argamassa política sólida, e não tendo o PSD já capacidade de fazer melhor do que aquilo a estamos a assistir, então há que não temer virar a mesa ao contrário e reabrir o jogo.