Vivemos tempos em que a informação circula de uma forma tão rápida e com um volume tão elevado que passámos a ter uma memória muito mais curta.
Se assim não fosse não haveria justificação para repetirmos sempre os mesmos argumentos, constando na ordem do dia sempre as mesmas questões e, depois de uma catarse, ficar tudo na mesma. Passado algum tempo repete-se um novo ciclo com a máxima “água mole em pedra dura…”.
Recentemente voltámos a depararmo-nos com o seguinte soundbite: “os médicos deveriam ser obrigados a retribuir ao SNS o custo da sua formação”.
Já o referi anteriormente, mas voltarei a insistir nesta verdade insofismável. Os médicos internos não são estagiários! São acima de tudo médicos. Autónomos, responsáveis e elementos essenciais ao funcionamento regular da maior parte dos serviços onde estão integrados.
Sim, são médicos que estão a aprender. Mas não são estudantes! Os médicos internos trabalham arduamente nos serviços em que estão integrados, enquanto vão aprendendo as vicissitudes da sua especialidade, e estudam muito, desenvolvem trabalho científico e alguns até se aventuram a iniciar programas de doutoramento, levando o bom nome do nosso SNS aos congressos e conferências por esse mundo fora.
E no final do dia, faustosamente remunerados a 8€/hora, chegam a casa e tentam sentir a vida dita normal.
Será que no final destas contas os médicos internos devem alguma coisa ao SNS? Antes de insinuarem quem deve a quem, verifiquem os pontos eletrónicos e as bolsas de horas. Talvez o Ministério da Saúde tenha uma surpresa e deva começar a fazer contas de modo a compensar o excesso de trabalho (grande parte não remunerado) e o burnout.
Se no final da formação esses médicos saem, não olhem para eles como se fossem os ingratos que apenas “usaram” o SNS e que no final o traíram por 30 moedas de prata. Temos de refletir sobre o que o SNS tem a oferecer para quem fica após um internato médico que pareceu um longo período de recruta. O que o desinvestimento no SNS oferece a um jovem especialista? A ausência de perspetiva de progressão na carreira médica, incapacidade de resposta à infindável lista de espera e em que ao ser formulada a pergunta “doutor quando é que vou ser operado?” se responde “quando receber o vale cirúrgico”, períodos de consulta com doentes marcados a cada 5 minutos, urgências sobrelotadas, dificuldade em implementar inovação técnica e tecnológica pois o orçamento não o permite e no final de tudo isto apenas impera um sentimento: frustração! E ninguém aguenta muito tempo a fazer omeletes sem ovos.
Não obstante esta investida cíclica que é facilmente desmontada por alguém que conheça o meio, ouvi também recentemente uma comentadora criticar o facto de um dos problemas da falta de médicos é devido a serem os próprios médicos a definirem o internato médico, sugerindo remeter a formação médica para o controlo de uma entidade externa.
Mas do que estamos nós a falar? Quem define as linhas e orientações que conferem o estatuto de especialista numa determinada área? Uma qualquer consultora multinacional? A Ordem dos Advogados? O Grémio Literário? Mas afinal quem pratica a arte da Medicina? Quem sabe quais são os requisitos mínimos para definir um médico especialista com as especificidades que cada área tem?
Os médicos em formação têm avaliações anuais que culminam numa avaliação final para obter o grau de especialista, após o cumprimento de um programa de formação determinado (e bem!) pela Ordem dos Médicos. E o cumprimento desse programa é o garante da qualidade formativa e sobretudo da qualidade da Medicina praticada em Portugal, por especialistas bem preparados.
Ao longo deste processo formativo, que pode ir de 4 a 6 anos (conforme a especialidade), têm de cumprir um número mínimo de requisitos (cirurgias, consultas, contacto com determinadas patologias, etc.) para no final submeterem-se à avaliação onde poderão adquirir o grau de especialista. E a falta de vagas para as diferentes especialidades não se resolve diminuindo os requisitos mínimos, diminuindo a qualidade da formação, pois isso terá uma repercussão direta nos cuidados prestados aos doentes no futuro. Mais uma vez resolve-se investindo no SNS de modo a serem criadas condições para que os especialistas já formados não saiam, pois estes são o garante da continuidade do ensino médico.
Sim, por incrível que pareça, quem ensina os médicos são outros médicos e isso também não pode ser delegado numa qualquer entidade externa. Portanto não tentem encontrar soluções meramente matemáticas para as pessoas que constituem o SNS. Encontrem soluções humanizadas onde as pessoas se sintam motivadas e isso passa por não olharem à volta para o desmoronar de algo que demorou 40 anos a contruir e está a ser destruído de uma forma provavelmente irreversível.