O conceito ‘Loja do Cidadão’ reúne duas atracções poderosas: o estado e o comércio. Serão essas atracções combináveis? Na opinião dos inventores do conceito não existem dúvidas: há vantagens práticas inegáveis em se poder simultaneamente licenciar uma horta e obter o divórcio, e não há razão para que os passaportes não possam ser reemitidos antes de se perder a carteira, ou que se faça o testamento enquanto se pede asilo político.
Ao entrar numa loja do cidadão qualquer pessoa é imediatamente impressionada pela quantidade de bens em exposição e em oferta. O estado tem a reputação de ser como as antigas lojas na Roménia e em Moçambique, isto é, de ser um pouco formal; mas tal como na Roménia e em Moçambique as lojas se parecem hoje com lojas, assim as lojas do cidadão dos estados modernos surpreendem pela quantidade de oferta em exposição.
Esta abundância constitui uma tentação irresistível para quem ali vai às compras, e suscita mesmo embaraços: deveremos pagar a contribuição para a segurança social? Reconhecer uma assinatura? Comprar cartões de Boas Festas da protecção civil? Criar uma grande empresa? Processar a Força Aérea? Adoptar um órfão? A possibilidade de todas estas actividades, e até outras, estarem à mera distância de uma senha torna mais provável o cenário de cidadãos a exercerem os seus direitos com aplicação.
Levantam-se todavia vários problemas, nomeadamente: o de saber se o consumo induzido dos serviços do estado é desejável; se o exercício de possibilidades que caracteriza as excursões para efeitos de consumo não será realizado com mais proveito nas lojas da variedade corriqueira, onde se compram couves, esferográficas, títulos de fundos, e telefones; se a ideia de ser oficialmente membro de um estado precisa do estímulo constante à utilização de todas as facilidades que ele nos concede, isto é, se o exercício das possibilidades práticas deve ser incentivado; e se tal constitui um caso de comércio ou uma razão para lojas.
Dar ao estado o ar de comércio não é apoucar a sua dignidade. Com efeito, o comércio tem quase tanta dignidade como o estado: causou seguramente mais benefícios, e cometeu historicamente menos erros. Mas descrever a nossa relação com o estado como uma relação de comércio é dar-lhe um aspecto de primeira necessidade que talvez seja exagerado.
Pôr os cidadãos às compras insinua não obstante que as nossas interacções com o estado são familiares e quotidianas, e determinadas por considerações de necessidade e de preferência; que o estado é conveniente como entrar numa loja, e amável como arranjar amigos. Mesmo nos Moçambiques de hoje nota-se sempre o tom das Roménias de ontem: afinal de contas há um único modo de pagar a segurança social. A escolha é limitada e a preferência é ociosa; do estado não se pode esperar comércio; um cidadão não pode ir às compras.