Fui ter com o Cónego Jeremias à esplanada onde gosta de ir, religiosamente, tomar uma bica e ler o jornal. Também não desdenha dois dedos de conversa com os frequentadores do café, onde é muito popular.
– Então Senhor Cónego, que me diz sobre a questão das gémeas?
– Pois olhe, uma grande trapalhada, que infelizmente afecta o Presidente da República. Se, como os antigos diziam, à mulher de César não lhe basta ser séria, pois também deve parecer que o é, imagine o próprio César!
– Mas a culpa não é toda do filho do Presidente?!
– Embora se queira fazer crer que o dito ‘Dr. Nuno’ é o bode expiatório, não foi o único que interveio, nem podia, por si só, obter o resultado alcançado.
– O Senhor Cónego acha então que o Chefe de Estado tem culpas no cartório?
– Não sei, nem me compete julgar, como é óbvio. Mas se, de facto, deu andamento ao pedido que lhe foi feito pelo filho, devia reconhecer que o fez, até porque, tratando-se de uma causa humanitária, essa atitude seria compreensível.
– A mãe das gémeas, na comissão parlamentar, ilibou pai e filho …
– É óbvio! Ponha-se na pele dela: a mãe de duas crianças, que precisam de um tratamento milionário, e que o consegue graças à intervenção do pai de um conhecido, iria depois acusar esse conhecido, ou o pai dele?! Claro que só lhes pode estar grata!
– Quer dizer que a mãe é inocente neste processo?
– Qualquer mãe, naquelas circunstâncias, teria feito o mesmo. Outra coisa é que tenha mentido, ou que seja lícito proporcionar às gémeas um tratamento tão caro.
– Mas é legítimo alguém interceder por um seu familiar, ou conhecido?!
– Do ponto de vista ético, não há problema em chamar a atenção para uma situação particular, que se entende urgente. Se entro num hospital e vejo um doente que está a gemer, é evidente que vou chamar quem o possa atender. Não fazer nada não seria razoável, como também não seria agir de forma injusta para com os outros doentes, ou contrária ao bem comum: seria condenável que, por hipótese, um autarca usasse a sua influência para desviar o médico de um doente mais necessitado, para atender um seu amigo. A caridade deve respeitar a ordem da justiça pois, como Jesus disse à mulher sirofenícia, não é justo dar aos de fora o pão dos filhos (Mc 7, 24-30; Mt 15, 21-28).
– Quer então dizer que a cunha é eticamente aceitável?
– Pode ser, desde que não implique nada injusto para ninguém, nem seja contra o bem comum. É, aliás, o que Jesus preconiza, na parábola da viúva e do juiz iníquo (Lc 18, 1-8), ou a propósito da oração (Lc 11, 9-13). O que não seria aceitável seria prejudicar alguém desconhecido, ou a sociedade em geral, para beneficiar um familiar, amigo ou conhecido.
– O Senhor Cónego é muito benevolente com esta instituição nacional …
– Nacional?! A cunha é, pelo menos, evangélica, pois já os filhos de Zebedeu, João e Tiago, meteram uma cunha a Nosso Senhor.
– Que cunha foi essa?!
– Então não sabe que a mãe deles pediu a Jesus que, no seu reino, eles se sentassem à sua direita e esquerda? Quer uma cunha mais descarada do que esta?! A dita mulher queria, para os dois filhos, nada mais nem nada menos, do que os dois principais ‘tachos’ do Reino dos Céus (Mt 20, 20-28; Mc 10, 13-45)!
– E Jesus cedeu?!
– De modo nenhum! É curioso notar que os dois irmãos, talvez porque tinham noção da impertinência desse pedido, não se atreveram a fazê-lo directamente, recorrendo à mãe para este efeito. Mas é a eles, e não à mãe, que Jesus responde, ciente de que foram os verdadeiros autores do pedido, de que ela foi apenas intermediária.
– E que lhes respondeu Cristo?
– Ofereceu-lhes, em troca, a Cruz: “haveis de beber o meu cálice, mas, quanto a estardes sentados à minha direita, ou à esquerda, não pertence a mim conceder-vo-lo; será para aqueles para quem está reservado por meu Pai”.
– Quem são?
– Talvez Maria e José, pois não há criaturas mais dignas desses lugares do que aqueles que foram, nesta terra, a sua Mãe biológica e o seu Pai adoptivo.
– Como reagiram os restantes apóstolos ao pedido dos filhos de Zebedeu?!
– Bastante mal, como era de esperar: “os outros dez, ouvindo isto, indignaram-se contra os dois irmãos.” Pudera! Também eles eram ambiciosos – entre eles já tinham discutido quem era o maior! (Lc 9, 46-62; 22, 24) – e, por isso, não gostaram nada do golpe dado, nas suas costas, pelos filhos de Zebedeu …
– E Jesus aprovou a sua indignação?
– Também não, porque, se os ‘irmãos Cunha’ se tinham deixado tentar pela ambição, os outros dez caíram na tentação da inveja que, como a cunha, é também muito portuguesa: não em vão é a palavra com que Luís de Camões termina Os Lusíadas!