1 A intervenção política dos militares franceses — estranhamente (ou não?)  ignorada entre nós por quase toda  a comunicação social, com excepção do Observador, do Sol e agora finalmente da SIC — foi vista como “uma ameaça às instituições republicanas”.

“Ameaça”  que no entanto foi logo apoiada por mais  de 78 000 assinaturas e cerca de 58 % dos franceses.

Ajudados pela tentativa (natural) de Marine Le Pen aproveitar a oportunidade, habilmente, aliás, várias personalidades e certa comunicação social protestaram em  coro.

Além do atual Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas François Lecointre, Jean-Luc Mélenchon, versão de Louçã francesa, por exemplo, veio lembrar  que “a insurreição é punida pelo Código Penal”,  mas há dois anos considerava-a como o “último  dos deveres” inscrito no “temperamento do povo francês”.  E  o que foi o nosso tão justamente glorificado movimento dos capitães?

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2 Por outro lado, sabendo-se que uma parte não depreciável  das Forças Armadas apoia as teses do Rassemblement National (que já contava com  o voto de 62% dos polícias), logo foi dito que para publicarem esse primeiro manifesto (Current Values) fora escolhida uma data significativa para a extrema direita francesa, 21 de Abril, data do levantamento de  Argel e também da  chegada  de Jean-Marie Le Pen àsegunda volta  das eleições  presidenciais de 2002. Mas na verdade esqueceram-se que esse primeiro documento dos militares  fora, afinal, publicado  em 13 de abril!

Teoria da conspiração alimentada pelo facto, natural, de muitos dos signatários serem próximos de círculos de direita radical. Realidade  que não impediu que um segundo Manifesto de que neste texto dou conta (de 9 de Abril), este de militares no activo e aberto à subscrição de  civis, reunisse o apoio de cerca de 250.000 signatários apenas na noite de terça-feira, dia 9.

Claro que é fácil dizer-se que nesses dois documentos há a mão de um sector da direita, mas isso é esconder o que neles realmente é relevante, visível também pela polémica que estão a suscitar e pelo  facto de recolherem  tantos apoios: dizerem algo de verdadeiro sobre o estado da França. Da França nitidamente, mas só da França?

3 Em primeiro lugar apontam para uma França a viver uma tripla desintegração: a da cultura woke, da ideologia islâmica e do empobrecimento geral da sociedade. Três ameaças frente às quais o Estado mostra, se não cumplicidade, um laxismo culpado que ameaça o país com uma explosão, que de acordo com o  que é dito no  segundo Manifesto obrigaria à “intervenção dos nossos camaradas no activo no que seria uma perigosa missão de protecção dos nossos valores civilizacionais e salvaguarda dos nossos compatriotas em território nacional”. E denuncia os ataques contra um exército que está na linha da frente contra o islamismo, concretamente através das várias operações externas em que está envolvido. (Operações, registe-se, em que as forças armadas portuguesas também têm estado e estão envolvidas.)

Em suma, o que esses oficiais acusam é um Estado que abandonou ou trai as suas legítimas funções de soberania, de segurança interna e externa.

4 Vários dos signatários saíram  do anonimato e explicaram os motivos que os levaram a assinar o Manifesto.

Convidado de Europe 1, na quarta-feira, dia 12, o general Richoufftz denuncia uma situação de “guerrilha urbana” nos subúrbios, enquanto na véspera, o general Dominique Delawarde falava, desta vez no CNews, para criticar o funcionamento da Justiça. Mais interessante, é esse general, autor de vários artigos dedicados aos Estados Unidos, vir defender a transformação da autoridade judiciária num poder com verdadeira autonomia, semelhante à dos poderes executivo e legislativo, manifestando-se  mesmo pela eleição dos magistrados. Situação que já existe em certas jurisdições francesas, inspirada obviamente no que existe nos Estados Unidos e na Suíça.

 5 É certo que o envolvimento dos militares na esfera política não inspira simpatia ou confiança em quem aprecia a liberdade.

Mas isso não significa que os cidadãos não devam questionar a política, os Governos e os Partidos, pelo clima  de deriva em que visivelmente se afunda a sociedade, não só em França mas em vários outros países da Europa. Situação que parece poder vir a fragilisar a União Europeia.

Quando se pensa na tomada do poder dos militares na história recente da Europa, concretamente no nosso País, verifica-se que se verificou sempre num contexto de instabilidade e incapacidade do regime político, dos Partidos, do Estado, para cumprirem as suas responsabilidades essenciais, desde logo garantirem a paz pública, as liberdades, começando pela de expressão, a proteção dos direitos e mesmo a vida dos cidadãos, para não falar já do progresso social.

As intervenções em causa, extremo que não se imaginaria num país da UE, note-se, mostram a gravidade da situação francesa, lançando luz sobre o espírito e o contexto em que foram publicados nas últimas semanas os dois Manifestos. Essas proclamações, políticas inevitavelmente, mas afirmadamente patrióticas, ocorrem realmente num quadro muito evidente de fragilidade e risco de decomposição de um Estado soberano.

6 Não sendo imaginável um golpe de Estado na França, o que a própria reacção dos políticos à manifestação dos militares revela é um Estado dominado por abusos autoritários, burocratizado até à medula, campeão da OCDE em impostos, com uma despesa pública que representa mais de 60% do PIB, mas designadamente incapaz, em cada dia mais dramaticamente, de cumprir a missão essencial da segurança.

O que os signatários militares dos manifestos fazem não é mais do que colocar o dedo na ferida, apontando para o cerne da degradação do aparelho de Estado francês. Mostram aos cidadãos, portanto, a necessidade de um Estado reorientado antes  de mais para  “a sua missão de soberania legítima, braço armado de uma civilização fundada na razão, no direito, na liberdade e na democracia”. Uma civilização cada vez mais atacada por dentro e por fora, cuja continuidade se apresenta posta em causa por um Estado inepto, conformado ou cúmplice perante o avanço de um neo-totalitarismo,  aliança neo-nazi entre o esquerdismo que cavalga o delírio woke de regressão civilizacional  e a cruzada islamista.

NB – Este texto recorre a  uma análise francesa que subscrevo.