Quando o canhão do Potemkin dispara, a Rússia atrasa-se 50 anos
Provérbio russo

1 Somos todos ucranianos. Putin é um resto que supurou de um passado sangrento.

Há momentos tão dramáticos que é ousado reflectir. Mas é preciso fazê-lo. Aprecio os comentários dos nossos generais. Formaram-se para serem objectivos e serenos. Não querem vender nada a ninguém nem precisam de apregoar nada. Sabem. Lembram e abrem pistas. Geralmente subscrevo as suas análises.

É o caso da intervenção esclarecida do Senhor General Fontes Ramos (CNN, 2/3).* Não choveu no encharcado de redundâncias inúteis e pouco informadas dos comentários do costume.

Foi utilíssimo vir lembrar que o modelo para a solução do conflito já existe e foi testado: a) garantias à Ucrânia de que poderá escolher o seu destino; b) e à Rússia de que a Ucrânia não será uma potência militar. Como não de ser precisa de ser para se desenvolver, porventura mais aceleradamente: a Suíça, por exemplo, também não é.

Quanto ao modelo para as regiões separatistas, é escolher entre as várias autonomias bem sucedidas, quando não há interferência externa, como não parou de acontecer em HK.

A pergunta que se coloca é a seguinte: será possível algum compromisso com Putin?

A Europa e o Ocidente estão em desvantagem: querem evitar a guerra e não querem mesmo combater; Putin sabe isso e faz a guerra. Que fazer?

A solução remete para a capacidade de resistência da Ucrânia — a dificuldade é a logística, quanto tempo poderá resistir? E para a determinação da Europa — é urgente a abertura da União; não estão os Ucranianos a provar com a vida o direito a serem europeus? A solução depende sobretudo da reacção interna dos russos — deixará a Rússia, as elites e o povo, mais uma vez, um ditador destrui-la, pará-la? Parece ser um destino fatídico que arrasta com ele os povos eslavos. “Quando o canhão do Potemkin dispara, a Rússia atrasa-se 50 anos”, dizem os Russos e ouvi eu in loco.

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2 Detenho-me numa informada previsão do Senhor General: “Iremos viver num mundo dividido entre democracias e autocracias” (cito de memória), blocos que se auxiliarão mutuamente – terei ouvido bem?

É, de facto, inevitável cooperarem. Apesar do empenho de muita gente no extermínio recíproco. Sem essa cooperação os próprios e o Mundo não serão viáveis. A necessidade e os interesses, nacionais e global, impõem essa solução. O contrário seria, aliás, contra-natura num mundo em que as mutações tecnológicas, a economia, a ecologia, o desenvolvimento, a ambição e exigência de prosperidade dos povos… e os vírus obrigam ao entendimento e à cooperação. Os vírus, que nos matam, também nos unem.

A situação actual no Leste não é paradigmática. É um resto infeccioso do horroroso passado comunista mal resolvido. Ferida mal curada, exposta à infecção de ditaduras de ressentimento, intolerância e crueldade, que agora encheu e supurou.

Resto agravado, porventura, por uma prolongada, preguiçosa, sem brio, dependência da Europa da muleta americana.

3 A minha convicção é que se desenvolverá mesmo uma osmose de soluções entre os blocos democrático e autocrático. Porque a necessidade (mútua) pode muito.

Num lado, disfunções no modelo democrático que vêm da sua fundação moderna – como Churchill logo se apercebeu** — e a pós-modernidade agravou. Disfunções que fragilizam a democracia, que ameaçam as liberdades e a prosperidade que gerou e a mantém; necessidade de uma regulação (como a quis o melhor liberalismo) que reconduza o capitalismo e a liberdade de mercado à sua forma produtiva. Rectificação que está a fazer a China, que os importou do Ocidente liberal e prosperou com eles.

No outro lado, a necessidade dos regimes políticos autocráticos encontrarem uma solução moderna de legitimidade popular. Solução exigida pelas elites e as novas burguesias enriquecidas por esse capitalismo que um modelo de algum modo imperial fez até ao presente funcionar com eficácia. Exigência só relativamente contida pela continuidade do enriquecimento e da paz interna. Sem os quais o regime chinês cairia.

4 No que se refere ao Ocidente, a dificuldade de olhar para o outro, de concretizarmos tal desiderato, é um traço civilizacional persistente. Uma dificuldade de descentramento, de ver o outro na sua realidade.

Como explica François Julian, filósofo e sinólogo singular, nós ocidentais santificamos a diferença. Explica: “Analisamos e comparamos A e B, mas esquecemos B para no final reter apenas A. Na China, pelo contrário, mantém-se a tensão entre A e B, permitindo que haja um “entre”. Um outro possível, explica Julien, que vai à civilização chinesa procurar a diferença harmonizadora de uma outra metafísica. Como seria útil e oportuno entre nós esse exercício de descentramento.

* Num ponto o Senhor General me pareceu equivocado. Ao contrário do que suponho ter dito, a China defende o princípio de não interferência na realidade interna dos países (ver a declaração clara, no momento oportuno, parece, do ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, de 7/3, e o lúcido pedido da União Europeia para que a prudente diplomacia da China seja a mediadora no conflito). É um princípio multissecular (defensivo) da política externa chinesa . É mesmo um traço civilizacional. Repare-se que não invadiu nem nunca disse que invadiria Macau, Hong Kong e Taiwan. Apesar de serem territórios da China, com população e língua chinesas, e terem podido fazê-lo sem oposição externa em 1949. São factos.
** W. Churchill, prefácio à História da Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, a mais facilmente evitável de todas as guerras!