Daqui a poucos dias o Governo apresentará a sua proposta de Orçamento para 2022 e, como de costume, as atenções centrar-se-ão no valor do saldo das Administrações Públicas em percentagem do PIB e, eventualmente, na Dívida Pública.  É certo, que tendo o país vivido uma pandemia, que persiste, esperamos que em transição para uma endemia de Covid 19, o ponto de partida (estimativas de Despesas e Receitas no final de 2021) será muito afectado por esse facto.  Genericamente, a crise sanitária pressionou a Despesa, função dos gastos adicionais em saúde e nos apoios concedidos e, igualmente, a Receita, ao erodir a base fiscal de alguns impostos em função do decréscimo da actividade económica que aquela motivou. O escrutínio do Eurogrupo ainda não será tão exigente como já foi e voltará a ser, quando a excepcionalidade da situação for tema do passado.

Poder-se-ia dizer que o valor do défice projectado é pouco importante por estas razões, onde ainda é difícil distinguir o “ruído” da excepcionalidade temporária do que seria o seu valor em condições mais próximas do habitual. Mas, do meu ponto de vista, a razão pela qual o seu valor, sempre relevante, não é a métrica mais importante neste momento, prende-se com razões mais permanentes que as decorrentes da crise sanitária. Na verdade, no valor do saldo sintetiza-se o resultado de muitas medidas e consequências de política, com impactos sobre as Receitas e a Despesa. Não irei, para já, discutir a política fiscal, mas antes a falta de atenção que se tem prestado à evolução da Despesa e seus componentes e à sua dinâmica a médio e longo prazos.

Olhando para o passado recente, verificamos que a Despesa tem evoluído dentro de valores globais aparentemente sustentáveis, tendo a Despesa Total caído de mais de 50% do PIB nos anos anteriores a 2011 para 42,5% em 2019 (tendo-se aproximado novamente dos 50%) nas condições excepcionais de 2020. Acontece, porém, que estes números representam uma política de contenção draconiana das despesas correntes — possível num governo de esquerda com a extrema-esquerda comprometida nessa mesma estratégia — a despeito do impacto já visível na qualidade e disponibilidade dos serviços prestados, o alívio muito considerável dos juros em função da política acomodatícia do BCE e a redução a níveis historicamente baixos do investimento público.

Embora se tenha conseguido disfarçar a perda de qualidade de muitos serviços com a invocação das dificuldades inerentes à pandemia, a verdade é que, sem intervenções na gestão e nos meios disponíveis, a degradação vai ser mais sentida, não apenas pelos funcionários mas também pela população em geral e, mais tarde ou mais cedo, ou as narrativas induzem utentes pouco exigentes a aceitar uma degradação permanente dos serviços ou a estratégia esbarra na parede da sua insustentabilidade. Acontece que, havendo vontade e um módico de pensamento a prazo, o PRR poderá ajudar a mudar a situação e a inverter a tendência dos últimos anos. Se bem que as verbas disponíveis sejam verbas de investimento e não destinadas a gastos correntes, se se decidir avançar por uma verdadeira transformação digital da administração, optimizando processos, reestruturando serviços e dando a adequada autonomia de gestão aos diversos níveis, a situação poderá inverter-se. Mas tal implica uma atitude reformista nunca vista na Administração Pública nas últimas décadas e a noção de que, feitos os investimentos e as reformas que os valorizem, há que atender a que a operação não pode voltar à perda contínua de meios, mesmo se num patamar diferente. Se for uma mera digitalização, será um maná para os consultores e fornecedores de equipamentos, mas o benefício para os cidadãos será materialmente irrelevante.

Os outros dois grandes factores de consolidação foram a quebra da despesa com juros fruto da política monetária acomodatícia do BCE, que não deverá manter-se, na sua actual configuração, por muito mais tempo, prevendo-se um impacto negativo em futuros orçamentos. No entanto, é ainda incerto que venha a ocorrer um impacto não negligenciável na realização do orçamento de 2022. O ministro das Finanças sabe disto melhor que ninguém no governo e, naturalmente, começa a estar debaixo do fogo dos crentes no pensamento mágico que nos tem colectivamente guiado. O último factor prende-se com a difícil continuidade da política de “descapitalização das Administrações Públicas”, que é antiga, mas que a actual configuração governativa levou a cabo com particular empenho e proveito (algébrico, entenda-se). Num recente artigo no Eco, o economista Miguel Faria e Castro mostrou que o stock de capital público caiu de um máximo de mais de 80% do PIB no início da década que agora terminou para menos de 65% em 2019. Elucidativo da importância desta política de descapitalização no sucesso do nosso tão apreciado “processo de consolidação orçamental”.

E o futuro? Como dizia Teodora Cardoso no Público de terça-feira, não se espera que um exercício orçamental possa resolver os problemas do presente e do futuro. Mas, como referiu, “nada desculpa que continuemos a ignorar o reconhecimento da sua existência”. A saber, do meu ponto de vista, a não existência de políticas públicas amigas do crescimento económico ou o impacto da nossa terrível demografia, com efeitos futuros de enormíssima dimensão na capacidade de pagar pensões decentes aos portugueses que pagam as actuais, e no sistema nacional de saúde que, sem reformas, não prestará os devidos serviços a uma população crescentemente envelhecida. Esta quadratura do círculo, pelo menos seguindo as políticas do costume, não será resolvida neste mês de Outubro. Mas é muito mau sinal se nem sequer servir de base à mercearia política que nos espera nas próximas semanas.

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