Não, o Governo não está a ir longe de mais no controlo do défice público. Bem pelo contrário, está a ser pouco ambicioso, nomeadamente para 2018. E nestes últimos anos poderia ter ido mais longe, obviamente com outras escolhas. Os riscos que enfrentamos ainda são muito elevados, como o demonstra o que aconteceu em 2017. Foi por uns escassos meio por cento do PIB, ou seja por 895 milhões de euros, que não nos embrulhamos de novo e pela quarta vez desde que há euro num processo por défice excessivo.
Comecemos pelo que dizem as regras europeias e que podem ser lidas aqui. Um Estado-membro viola as regras em matéria orçamental se o seu défice público for “superior a 3% do PIB”. Há duas excepções que evitam um procedimento por défices excessivos. Uma é o défice ter diminuído significativamente e de forma continuada estando “próximo dos 3%”.A segunda excepção é esse défice excessivo ter sido “uma excepção e temporário e o valor continuar próximo dos 3%”. É na expressão a ‘bold’ que se pode perceber o risco que corremos de voltar a entrar em défice excessivo, um ano depois de termos saído.
A capitalização da CGD é obviamente entendida como sendo uma excepção que elevou temporariamente o défice público nominal. Mas, mesmo por despesas que só se verificam num ano, a Comissão pode abrir um procedimento por défice excessivo se o valor não estiver “próximo dos 3%”. Como a expressão “próximo de” não está quantificada nas regras, a Comissão Europeia tem usado o valor que se refere para o défice estrutural, isto é, 0,5 pontos percentuais. Este entendimento é do conhecimento dos Estados-membros e obviamente de Portugal. Significa isto que se o défice público português tivesse atingido os 3,5% do PIB mesmo incluindo a despesa/investimento com a capitalização da CGD, Bruxelas abriria um procedimento por défices excessivos a Portugal.
O défice público previsto no Orçamento de 2017 era de 1,4%. Se somarmos os 2% que equivalem à capitalização da CGD percebemos bem o quão próximo estivemos de voltar a violar as regras do Pacto de Estabilidade. Sem mais crescimento, sem poupança nos juros e sem a actuação do ministro das Finanças, que cortaram cerca de meio por cento do PIB ao défice público – os tais cerca de 895 milhões de euros –, lá estaríamos de novo a violar as regras orçamentais europeias.
Continuamos perigosamente no fio da navalha, numa posição ainda mais ameaçadora porque está criada a ilusão de que o problema está resolvido. O debate do Programa de Estabilidade na terça-feira 24 de Abril é disso um reflexo, especialmente nos discursos do Bloco de Esquerda e do PCP.
Sabendo nós que quer comunistas quer bloquistas consideram esta estratégia apenas uma panaceia e defendem que a efectiva solução para o problema é a reestruturação da dívida, percebe-se o discurso de condenação a mais redução do défice público – ainda que tudo se resuma a palavras sem consequências. Já se compreende menos o Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa afirmou, também esta semana e antes do debate do Programa de Estabilidade- que, sabia, iria ser difícil para o Governo –, que “finanças públicas saudáveis não são um fim em si mesmo”. O Presidente tem a obrigação de saber os riscos que corremos em 2017 e que continuamos a correr assim como, pelo que tem sido a nossa recente história financeira, sabe que sem finanças públicas saudáveis é impossível atingir todos os outros e muito importantes objectivos de serviço público.
As entrevistas que o ministro das Finanças deu na semana prévia ao Orçamento do Estado são reveladoras dos riscos que ainda corremos, internamente e no quadro da conjuntura internacional. Temos pelo menos dois problemas para resolver no sistema financeiro ou a ele ligado: o Novo Banco e o Montepio. Este último com graves implicações sociais enquanto o primeiro expõe as contas públicas a uma despesa da ordem dos três mil milhões de euros.
No domínio financeiro temos ainda de nos lembrar da dimensão do crédito malparado que continua a viver na banca, nomeadamente aquele que diz respeito a pequenas e médias empresas. Um problema que tarda a ver soluções efectivas, já que a famosa plataforma não tem qualquer resultado visível.
E dependemos significativamente de um conjunto de factores que não conseguimos controlar. O primeiro é desde logo um crescimento da economia baseado no sector do turismo. O segundo é a evolução das taxas de juro: com uma dívida pública equivalente a 125% do PIB, uma subida em 1 ponto percentual nos juros significa pelo menos mais um por cento do PIB em despesa. Enquadre-se ainda tudo isto na dívida total do país – da ordem dos 700 mil milhões de euros ou mais de três vezes e meia o PIB – e vemos a dimensão da nossa fragilidade perante uma subida dos juros.
É tendo como referência todo este retrato económico e financeiro que se pode dizer que temos muita sorte em ter António Costa e Mário Centeno tão empenhados em reequilibrar as contas públicas. Cinicamente podemos considerar que estas preocupações são determinadas pela expectativa de o PS ficar mais quatro anos na governação do país. António Costa tem de saber que aquilo que semear agora colherá num futuro em que pode ainda ser primeiro-ministro, como antecipam neste momento as sondagens.