Polícias, médicos, enfermeiros, professores, oficiais de justiça. Listas de espera na saúde e urgências com horas de espera. Alunos sem professores. Atrasos na justiça que a tornam injusta. Investimentos públicos adiados, como a grande velocidade. Este é o outro lado, preocupante, da estratégia que o Governo de António Costa escolheu, desde 2015, para reduzir o desequilíbrio orçamental e encerrar o seu mandato de quase oito anos, com uma dívida pública equivalente a 98,7% do PIB, o rácio mais baixo desde 2009 e agora o sexto mais elevado da Zona Euro. O desafio do próximo Governo é compatibilizar o equilíbrio orçamental com a satisfação dos funcionários mais qualificados do Estado e a prestação séria de serviços públicos.

Na quinta-feira dia 1 de Fevereiro assistiu-se a um entusiasmo inédito com a divulgação de uma estatística do Banco de Portugal. Um entusiasmo que já estava a ser alimentado desde o fim da semana anterior. Normalmente temos de esperar pelo Procedimento dos Défices Excessivos divulgado pelo INE, entidade com a responsabilidade para tal, para conhecermos os números oficiais. Assim como temos de esperar pelo deflator do PIB de 23 (valor da subida dos preços), também produzido pelo INE, para termos valor nominal rigoroso do que produzimos. Mas tudo isso atirava a divulgação destes dados para depois das eleições legislativas. Daí o protagonismo assumido pela estatística financeira do Banco de Portugal usando uma estimativa para o PIB de 2023.

Logo pela manhã desse dia, o governador do Banco de Portugal Mário Centeno, ainda os números não tinham sido publicados, resolveu dá-los na conferência Fórum da Banca. Mais tarde foi a vez de Fernando Medina convocar uma conferência de imprensa para nos dizer que a dívida pública ficou em 98,7% do PIB, este valor calculado através do deflator do terceiro trimestre, o mais recente publicado pelo INE. O ministro das Finanças garantiu assim que não era só Mário Centeno que aparecia nas imagens colado a este sucesso, que realmente só começou a ser visível com o mandato de João Leão. Mas, sendo justos, num caminho de redução do desequilíbrio das contas públicas iniciado com Mário Centeno a liderar as Finanças e João Leão como seu secretário de Estado do Orçamento. É, pois, natural que o agora governador não quisesse ficar desligado deste sucesso.

Porque é de facto um sucesso que não devemos desvalorizar. Ter a dívida pública controlada e longe do top dos mais endividados da Zona Euro protege o país de eventuais tempestades financeiras, que levam os investidores a serem mais prudentes e a recusarem financiar os mais endividados. Foi isso que nos aconteceu em 2011, quando tivemos de pedir apoio financeiro internacional.

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Céticos como devem ser todos os jornalistas, é obviamente necessário garantir que não estamos perante “contabilidade criativa” como já aconteceu no passado. Por duas vezes, primeiro com Durão Barroso e depois com José Sócrates, após as eleições em que mudou o partido de Governo descobriu-se que afinal as contas não estavam certas. (Houve um terceiro procedimento por défices excessivos ainda com José Sócrates, em 2009).

Fernando Medina garante que não existem truques nesta descida da dívida. Não se atirou dívida para empresas que estejam fora do perímetro da avaliação das contas e mesmo a estratégia usada no fim do ano passado, de amortizações antecipadas e adiamento de emissões de dívida, podendo levar a divida a subir nos primeiros meses deste ano, garante que 2024 consegue terminar igualmente com uma descida.

O problema está no outro lado desse sucesso financeiro, no custo que se está a suportar pelo caminho que António Costa escolheu para a redução do défice e, logo, da dívida. Praticamente desde o início desta governação que se alertou aqui para o que se estava a passar. Numa primeira fase, para “virar a página da austeridade” garantindo o voto do PCP e do Bloco de Esquerda, apertou-se financeiramente todos os serviços e empresas públicas, mantendo os cofres abertos apenas para os segmentos eleitorais dos respetivos partidos. Saídos de um aperto financeiro significativo do programa da troika e após uma década em que pouco se investiu nos serviços públicos, era previsível a degradação. Foi a estratégia de controlar as contas públicas com medidas eleitoralistas e de manutenção do poder que nos trouxe até aqui.

Os polícias estão a ultrapassar as fronteiras da legalidade e, se isso se provar, terão obviamente de existir consequências. Mas não deixam de ter razão, pelo erro que o Governo cometeu ao excluí-los do subsídio que deu à Polícia Judiciária, mas, mais do que isso, pelo acumular de degradação das condições de trabalho e dos salários. O estado em que estão muitas esquadras do país – frequentemente em contraste com outros investimentos desnecessários promovidos pelas autarquias -, assim como a frota automóvel da polícia, aqui em contraste com os carros que se vão dando, como direito, a algumas lideranças da administração pública e de empresas públicas, são bem reveladoras da inversão de prioridades.

Depois temos os professores que do básico ao universitário foram perdendo poder de compra ao mesmo ritmo em que ganhavam burocracias e se lhes exigia que fossem menos exigentes com os alunos, para bem das estatísticas da OCDE. A que se juntam os médicos e os enfermeiros que foram igualmente assistindo à falta de investimento na manutenção dos espaços e dos equipamentos a par de salários que perderam poder de compra.

À insatisfação dos quadros mais qualificados do Estado e dos equipamentos junta-se a degradação na prestação de serviços em geral. A Justiça é um dos casos mais gritante, sem que nada se tenha feito para a tornar mais rápida e eficaz.

E é assim que, enquanto o ministro das Finanças festeja “as contas certas”, os seus colegas de Governo enfrentam a revolta alimentada pela estratégia seguida desde Mário Centeno. Administração Interna, Educação, Saúde e até Justiça são o outro lado da vitória financeira. Temos de conseguir conciliar os dois mundos, o controlo das contas públicas e funcionários públicos satisfeitos, bem pagos e que prestem os serviços que os cidadãos precisam. É o desafio do próximo Governo.