Chegou incauto, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, da província para a capital aquando das eleições do XXII Governo constitucional de Portugal em 2019!

Homem moldado na raiz cultural dos bons costumes, ensaiava o debate com Abade de Estevães, figura parda, mas útil pela assertividade mordaz da sua eloquência. Apesar de não ser especialista, o assunto era do seu conhecimento pois tivera uma educação ao estilo Inglês. O debate prometia! Era com o Dr. Libório, homem do “sistema” que se perpetuava no poder, da área sectorial da Juventude e Desporto, também ele agricultor.

– Mas será, Sr. Abade, que vamos continuar a assistir impávidos e serenos às insuficiências, graves e profundas, crónicas e anacrónicas, do Modelo de Desporto Português, MDP, que se traduzem numa fonte de profunda preocupação e origem de fracassos que prejudicam a Juventude e toda a população?

– E não se esqueça do efeito perverso da COVID e seus derivados Dr. Calisto! Eu não diria melhor! Mas, tem o diagnóstico feito? — Remata de forma contundente o Abade!

– Por acaso até tenho. Penso que não deslustra, para um simples agricultor da província, este diagnóstico preliminar Sr. Abade. Senão vejamos:

  1. A insuficiência de prática desportiva, considerada de forma lata como atividade física não estruturada, exercício físico e prática desportiva, de todas as faixas populacionais;
  2. A insuficiência de resultados olímpicos, paralímpicos e absolutos, que resultem de uma aposta inequívoca das condições de crescimento e desenvolvimento, como consequência da falta de uma estratégia nacional programada a multi-ciclos, sem estar na dependência de fatores anómalos e circunstanciais, como tem sido o caso;
  3. As insuficiências da literacia desportiva nacional, pela falta da aposta do desporto nos diferentes níveis de educação (pré-escolar, 1º ciclo, 2º e 3 º ciclos, do ensino básico, ensino secundário e universitário) escolar e que não se subsumem a estratégias de cosmética para engrossar as métricas institucionais;
  4. A inexistência de um verdadeiro ecossistema de inovação no desporto, aproveitando a massa crítica do sistema científico e tecnológico nacional e das instituições de ensino superior, assim como o sector empresarial de base tecnológica (não de serviços);

– Mas Dr. Calisto, não me interprete mal, será que a culpa deste estado morre nos braços somente do Dr. Libório e da política do governo?

-Claro que não Sr. Abade. No entanto aqui ensaiamos a retórica parlamentar! A responsabilidade, que só peca por escassa, reside não só nos erros do Estado e política pública desportiva e suas lideranças, mas também do associativismo desportivo e das suas lideranças que ou não percebem o que está a suceder, e por isso são incompetentes, ou se calam por omissão e por isso são coniventes. Existem, claro está, outros fatores que condicionam e vão afetar a prática desportiva, transversais num quadro de responsabilidades partilhadas entre os vários sectores, quer internos quer externos. Desde logo, o envelhecimento da população; a crise económica e a austeridade orçamental; a emigração da Juventude como solução de política pública; um Estado jurisdicional e económico que veiculam a austeridade que fragiliza o Desporto,

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-Sabe Dr. Calisto, quase me faz recordar a estrofe do poema de Camões: Mas, como pode causar seu favor, / Nos corações humanos, amizade/ Se tão contrário a si, é o mesmo amor?

– É quase isso Sr. Abade! Dar-me-ia por feliz que neste contexto atual ou futuro pudéssemos gerar condições únicas, de coordenação estratégica entre as diferentes instituições liderantes do desporto nacional, para promovermos alterações substanciais ao modelo desportivo, com outros interlocutores. Por isso as minhas propostas concretas para desacreditar o Dr. Libório!

  1. Que seja suscitada, com carácter de urgência, a discussão sobre o futuro modelo do desporto e sistema desportivo em Portugal, face à realidade atual, as tendências evolutivas internacionais, acrescendo os contributos de todos os parceiros interessados, principalmente das organizações produtoras do exercício e desporto em Portugal.
  2. Que esta análise tenha em conta o Modelo de organização do desporto Europeu e que se proceda a uma análise comparativa do desporto europeu e tendências evolutivas do desporto internacional para 2030, com o desporto nacional, com indicadores objetivos (per capita, eurobarómetro, resultados grandes competições continentais, etc.) e que sirvam simplesmente para justificar os nossos erros.
  3. Que se proponha, face a esta análise, uma reforma com patamares transitórios para acomodar a necessária alteração dos interlocutores e agentes de mudança no modelo de organização do desporto em Portugal, inserindo nestes o estado, central; regional e local; as organizações desportivas cúpula (Comité Olímpico e Paralímpico de Portugal, Confederação Desporto Portugal, etc.), as federações de modalidade, clubes, associações e demais tecidos sociais, empresarial e cooperativo.
  4. Que a mudança no modelo de organização do desporto em Portugal seja sustentada na definição (1) e escolha (2) dos fatores críticos do modelo e a estratégia do desporto e sistema desportivo em Portugal, conjuntamente com as organizações produtoras do exercício e desporto em Portugal.

– Mas o Dr. Calisto sabe quais são?

-Tenho uma ideia, Sr. Abade! Uma ligeira ideia! É o que dá estarmos responsáveis pelas cousas das cambalhotas quando só percebemos de bolotas! Eu assumiria logo aqueles que me parecem ser os fatores estruturais: o financiamento do desporto – modelos e dotações; a organização e estrutura das políticas públicas para o desporto; as Instalações desportivas; o ecossistema da investigação científica, inovação e negócio e, como base e alavanca para os fatores funcionais – a massificação da prática desportiva e desporto de base (prática informal, sistema educativo, sistema produtor desporto, sistema prestador de serviços, exercício, etc.); o processo de identificação de talentos e sistema de desenvolvimento do rendimento; o suporte para atletas e pós-carreira; a questão dos recursos Humanos – técnicos e dirigentes; os quadros de organização da prática Nacionais e Internacionais.

E num ápice passaram-se três anos em que Calisto de Elói se deixa corromper pelo luxo e pelo prazer que imperam na capital, mudando mesmo a sua posição política de oposição para a do partido, agora liberal, no governo. Aproximavam-se as eleições e a disputa eleitoral do XXIII Governo de Portugal, em 2022, e mais uma vez Calisto fora chamado, agora a defender o que propusera e ninguém fizera.

– Vamos então ensaiar, Dr. Calisto! Apesar dos debates hoje em dia serem sound bytes discursivos de conteúdo duvidoso – propõe o Abade.

– Sabe Sr. Abade, penso que é tarefa ingrata fazer esta análise exaustiva tal como fizemos para as eleições do XXII governo constitucional. Desde logo porque o conteúdo das propostas dos diferentes partidos é vazio, como o era, e depois convenhamos, o desporto é irrelevante, principalmente para os que, no quadro das obrigações políticas, serão responsáveis pela definição estratégica das prioridades societais num país que se quer em desenvolvimento, como eu! Como compreendo agora o Dr. Libório!

– Sabe Dr. Calisto, afinal de fidalgo de Província você já nada tem! No universo das lideranças desportivas, políticas e organizativas, confluem diferentes interesses, mas raras vezes são os desportivos! Sobressaem o estatuto associado ao poder, a capacidade de decisão e influência, a intriga, o deslumbramento e a sedução. Mas, como estou de despedida, também lhe posso dizer, que via em si um artífice da política, não como o objeto da ação principal, mas sim o instrumento de mudança! Mais uma vez, enganei-me!

Nota: todas as personagens foram recuperadas do Romance de Camilo Castelo Branco, A queda dum anjo!