Desperto, atónito, com o anúncio público que o Governo de António Costa pôs ao dispor dos municípios, 30 milhões de euros, para que possam programar atividades culturais e assim reanimar “um dos sectores que foram mais duramente atingidos pela crise”. Não quero discorrer, sequer, sobre o facto de estes 30 ME terem sido subtraídos a projetos do programa Cultura para Todos, alguns dos quais já tinham sido aprovados e deviam ser contratualizados ainda este mês, assim como a relativa omissão das comissões de coordenação e desenvolvimento regionais decorrente das orientações específicas vindas do Ministério da Coesão Territorial.

O que me interessa relevar é que o ministério gerirá este novo financiamento, com uma dotação cerca de 18 vezes superior à linha de emergência de 1,7 milhões de euros que a tutela disponibilizou para amparar um sector quase integralmente paralisado pela pandemia de covid-19.

E, dou por mim a pensar, o que se passa, afinal, no universo do desporto e do exercício físico, de estrutural e corporativamente significativo, que possa ter resultados similares à cultura que promova ainda mudanças numa organização arcaica e atávica com reflexos na sua afirmação sociopolítica? Pouco, muito pouco de relevante.

Durante todo este período de pandemia, o único registo digno de referência, de procura de alguma convergência institucional no desporto, decorreu no dia 23 de abril de 2020, com o agendamento da reunião do plenário dos presidentes na Confederação de Desporto, CdP com 48 federações com Utilidade Pública Desportiva (UPD).

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Enquanto isso, não desvalorizando o papel que em bastidores e surdina as instituições cúpula do desporto pudessem estar a desempenhar, tudo foi feito sem a devida coordenação estratégica, entre as entidades do sistema desportivo, fundamentalmente com a procura de soluções convergentes de apoio aos clubes/ FD’s e OD’s, de extensão das medidas de apoio à atividade económica ao desporto.

O único momento mediático, mas confrangedor, foi a audiência pública do primeiro ministro no dia 28 de abril de 2020, com os presidentes da CdP, Comité Olímpico de Portugal, COP, e comité Paralímpico de Portugal, CPP, prévia à reunião entre o governo, a FPF, Liga de Clubes e os três “grandes”, para analisar as condições de retoma da atividade desportiva no contexto da pandemia da Covid-19, em que o cancelamento generalizado das competições desportivas pôs em risco a sustentabilidade de grande parte das organizações que compõem a pirâmide do sistema desportivo nacional.

Nesta sequência, assistimos a um rodopio de comunicações às federações desportivas sobre os cadernos reivindicativos sectoriais, com um conjunto de propostas para apoiar o desporto e que, invariavelmente, passavam pela criação de unidades de acompanhamento para analisar o efeito da pandemia no desporto e a necessidade de as medidas governamentais de apoio à atividade económica serem extensíveis ao desporto e os seus agentes.

Com base neste contexto, pode-se culpar o governo de falta de sensibilidade para a realidade caótica dos clubes desportivos em termos financeiros e a falta de apoio ao desporto, a exemplo do que sucedeu com a cultura?

Pode, mas não deve. A culpabilização, de outrem, ofusca como diria Eça, a nudez forte da verdade com o manto diáfano da fantasia, a responsabilidade de um setor que vale importante em termos económicos mas que, não tem tido a capacidade de se organizar numa voz convergente, mas dissidente do status quo atual, reivindicativa dos interesses do setor e onde a sede de protagonismos pessoais é maior do que humildade de uma partilha de responsabilidades em prole de uma causa comum que é o desporto e a sua afirmação sociopolítica.

É tão difícil assim coordenar entre as instituições cúpula do desporto nacional (COP; CPP; FdP; CdP) e as organizações desportivas com UPD, entre as quais as federações, uma reunião magna onde seja apresentado, discutido, e aprovado um caderno de encargos único para o setor, que agregue o universo das pessoas afiliadas evitando o espetáculo de assistirmos à entrega de propostas isoladas, algumas com tangentes tão secantes que mais parecem cópias, aos órgãos da tutela?

E depois, ainda reclamamos a necessidade de termos um ministério do desporto? Ministério, diga-se de passagem, que mais não seria uma repartição do governo central, para gerir iniquidades sem relevância corporativa? Sim, sei do que falo porque também eu já dei para esse peditório.

Sabemos que o Estado, e isto foi transversal a todos os setores sociais, acabou com os gabinetes de estudos e planeamento, sendo o exemplo mais paradigmático para o desporto a inexistência de massa critica no IPDJ, para analisar, refletir e projetar o desporto.

Sendo assim, porque é que o setor não se organiza, para resgatar a tradição de pensamento estratégico e de planeamento da ação pública, procurando diversificar o perfil de quem participa na definição de políticas e garantir que, coletiva e de forma convergente, reorganizamos as nossas práticas assumindo o pensamento reflexivo e coletivo, ao invés do palco do “achismo” e do comentário mediático?