Acabo de assistir à sessão solene evocativa do 25 de Novembro de 1975 e depois dos discursos em que os partidos explicam ao povo o significado da data, acho que finalmente compreendi. Ouvidos os diferentes argumentos, é evidente que o 25 de Novembro é uma efeméride trans. Porque é uma data distinta para cada um. Não há uma interpretação consensual. Ao contrário do dia inicial inteiro e limpo, o 25 de Novembro é o dia final partido e sujo.
Poucas horas depois da cerimónia na Assembleia da República, o PCP deu uma conferência de imprensa para apresentar a sua versão do 25 de Novembro. Escutei com atenção as palavras de Paula Santos e fiquei convencido com a argumentação comunista. Lamento desapontar os leitores do Observador, mas nesta querela do 25 de Novembro vou ter de dar razão ao PCP. Há um confronto de memórias e a do Partido Comunista apresenta as recordações mais límpidas. É que, se para a generalidade das pessoas o 25 de Novembro foi há 49 anos, para os comunistas parece que foi há 49 horas. Continuam a viver no PREC. É natural que tenham as lembranças mais fresquinhas. Dá ideia que, todos os dias, na Soeiro Pereira Gomes, o 25 de Novembro é tema. “E se tivéssemos mais armas? E se o Cunhal não tivesse hesitado? E se o povo não fosse profundamente reaccionário?” Enfim, faço esse exercício de masoquismo diário com a bola que o Bryan Ruiz mandou por cima da baliza do Benfica.
Um dos aspectos mais bizarros de ser pai nesta geração é a dificuldade em ver os meus filhos perderem. Não consigo vê-los perder um jogo de futebol, uma corrida, um prémio escolar, nada. Não é que me custe a sua derrota, é que eles não perdem mesmo! Por mais que tente, por mais eventos a que assista, nunca os apanho a perder. Hoje em dia, a sociedade está organizada para que as crianças não tenham de passar pela frustração do insucesso. Cada um à sua maneira, os pequeninos são todos vencedores. Pelos vistos, isto pegou-se aos partidos. No 25 de Novembro venceu toda a gente. O PS venceu porque ganhou. O PSD e o CDS venceram mesmo não tendo participado. O Chega venceu, apesar de ter lá dentro gente que perdeu. O PCP venceu porque sobreviveu. Tantos vencedores, é absurdo. Manifestamente, Portugal tem um problema com o discurso de pódio.
No fundo, o 25 de Novembro é como o Natal. Cada pessoa vive a festa que quer. A minha avó celebra o nascimento do filho de Deus, a minha mãe comemora a reunião da família, o meu tio festeja o solstício de Inverno, o meu primo é judeu e borrifa, a minha mulher emociona-se com os saldos, os meus filhos estão obcecados com presentes e eu só quero que tudo acabe depressa e que chegue o dia 26 com bons jogos de futebol do campeonato inglês. Ou mesmo com maus jogos. Ao fim de dois dias de algazarra familiar, já estou por tudo.
Há uma parábola indiana que explica esta diferença de percepções para um mesmo acontecimento – o que é engraçado, porque um dos grandes pândegos do 25 de Novembro é o Chega, que não aprecia indostânicos. Trata-se da história dos cegos e do elefante, que é uma história com cegos e um elefante. Na representação mais antiga, registada no texto budista Tittha Sutta, um grupo de cegos ouve dizer que chegou um estranho animal à cidade, um tal de “elefante”, e decide ir conhecê-lo para perceber como é. O primeiro cego toca-lhe numa perna e declara: “É uma tentativa de golpe comunista, esmagado pelas forças democráticas e pelos militares moderados, que evitam uma guerra civil”. O segundo cego mexe-lhe na tromba e contesta: “Nada disso! É uma intentona da extrema-direita a pretexto de movimentações militares inócuas, alegadamente ligadas ao PCP, com o objectivo de parar o processo democrático iniciado em Abril e perseguir adversários políticos!”. O terceiro cego segura uma das presas e sentencia: “Estão os dois equivocados. Não é nem uma coisa, nem outra. Não passa de uma confraternização bem bonita, só com democratas”. Entretanto, o elefante aborrece-se por estarem constantemente a apalpá-lo e vai-se embora. O último cego tenta agarrar uma parte do bicho, mas já só apanha ar, donde conclui que o 25 de Novembro de 1975 foi apenas a véspera do 26 de Novembro de 1975.
Não são nada parvos, estes budistas.