Depois de conseguir a independência da coroa britânica, os Estados Unidos da América precisavam de uma Constituição. As 13 ex-colónias convertidas em estados, não. Estas possuíam fronteiras bem definidas e administrações em funções, que vinham do tempo dos britânicos. De acordo com George Washington, quem precisava de uma Constituição eram os Estados Unidos da América, pelo simples motivo de que alguém tinha que pagar as contas do Governo. Os dois documentos que permitiram coordenar a guerra contra os britânicos – a Declaração de Independência e os Artigos da Confederação – não justificavam, per se, a manutenção do governo federal, mas este existia e precisava de dinheiro para funcionar. E esse foi o principal motivo pelo qual a Constituição foi redigida.
Mas essa não era a principal ambição dos estadistas ilustrados do final do século XVIII dos dois lados do Atlântico. Estes ansiavam por uma nação moderna, racional, baseada nos Direitos Naturais e no Contrato Social, como era proposto pelos filósofos iluministas da época. A Constituição dos Estados Unidos da América era um documento que não só ficava aquém das espectativas, como poderia ser utilizado para reduzir esses direitos naturais inerentes aos indivíduos. A epítome da liberdade nos Estados Unidos da América repousa nas imortais palavras redigidas pelos Founding Fathers da Nação: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Só que, ao contrário do que seria de supor, estas palavras não se encontram escritas na Constituição dos Estados Unidos, mas na Declaração de Independência.
Foi por isso que, apesar de ter sido ratificada em 1788, não foi preciso esperar mais de um ano para que se começasse a discutir a incorporação das primeiras emendas ao documento – 10 de um total de 13 propostas – cujo apartado se conhece como Bill of Rights. Este tomo especifica aqueles direitos que o Estado não pode violar (liberdade de culto, de expressão, de levar armas, a um processo judicial com garantias, a não ser espoliado pelo Governo, etc.) muitos deles adoptados pelas várias constituições em vigor, em quase todos os estados. Em suma, desde a sua génese que as constituições modernas estão constituídas, passe a redundância, por duas partes: uma em que se justifica a existência do Estado que a acata e descreve o funcionamento do Governo da Nação (a separação de poderes, os métodos de acesso aos cargos políticos, a duração dos mandatos, etc.) – o Contrato Social –, e outra onde se tenta limitar conscientemente o poder desse mesmo Estado, de forma a que o Governo não atropele os cidadãos e os converta em súbditos – a Carta de Direitos ou Bill of Rights.
Se parece fantástico que um pedaço de papel possua tal poder não é para menos. Isto porque, numa análise realista, sabemos que a interpretação do que é que esse poder constitucional protege de facto continua a ser mediado pelos detentores do monopólio da violência em cada momento, isto é, pelos governantes. A Constituição vale na medida em que os cidadãos acreditem de tal forma no seu poder que um incumprimento por parte do Estado lhes pareça uma infâmia passível de resistência, rebeldia ou revolta. Por exemplo, a Constituição Francesa de 1791, aquela constituição supostamente liberal que Louçã acusou os liberais de derrubarem, foi em realidade promulgada pelos jacobinos e de imediato suspendida para dar passo ao Terror. Essa infâmia foi expiada com a execução de Robespierre. Uma expiação legal aos olhos da doutrina da universalidade dos valores expressos na Declaração de Independência dos Estados Unidos. A famosa passagem citada acima continua: “Que, para assegurar esses direitos, os Governos são instituídos entre os Homens, derivando os seus legítimos poderes do consentimento dos governados – que quando qualquer Forma de Governo se converte em destruidora destes fins [vida, liberdade e a procura da felicidade] é um direito do povo alterar ou abolir o governo”.
A Constituição originária, com os documentos que a inspiraram, era um poderoso veículo de transformação legal do poder e, num verdadeiro Estado de Direito, um alerta constante, para que aqueles que governam não excedessem as suas competências, nem abusassem do poder que lhes é outorgado. A ameaça explícita na Declaração é naturalmente incómoda para quem tem a responsabilidade de governar, pelo que, para facilitar a legitimação das suas acções, muitos governantes procuram que a Constituição que os rege diga explicitamente aquilo que querem que seja legal e não aquilo que deveria ser legal. Por exemplo, o preâmbulo da Constituição Portuguesa de 1976 afirmava que entre as decisões do povo soberano estava a de “abrir caminho para uma sociedade socialista”. E para que não restassem dúvidas, os constitucionalistas deixaram claro, logo no segundo artigo, que “assegurar a transição para o socialismo” era o objectivo de um governo constitucional em Portugal. Isto é: era legítimo e legal.
Mas como o socialismo marxista-leninista (que era ao que se referiam) não era algo verdadeiramente apetecido pelo povo português em geral e apenas moderadamente pela elite política em particular, este objectivo foi felizmente ficando na gaveta. Infelizmente, foi essa mesma falta de apetite, de governantes e governados, pelo cumprimento da Constituição a que permitiu que as garantias constitucionais da liberdade dos indivíduos fossem ignoradas e suspendidas durante a Fraudemia que tolheu de medo grande parte da sociedade durante quase dois anos. A diferença entre as duas situações é que enquanto a “transição para o socialismo” não é um desejo que deva ter cabida num documento como a Constituição, pois extravasa o âmbito estrito do Contrato Social, as liberdades individuais são uma garantia inerente ao próprio documento, sem as quais este não tem substância. E o governo, qualquer governo, tem a obrigação legal, ética e moral de as defender, inclusivamente contra a vontade da maioria, sob pena de perder a sua verdadeira legitimidade.
Só que esse medo colheu de surpresa grande parte da classe política, e não apenas em Portugal. Como sabiam que ao suprimir as liberdades dos indivíduos não cumpriam com a sua obrigação, a maioria dos políticos, da generalidade dos partidos preferiu a fuga para a frente. Em vez de admitir que seguiam a irracionalidade da multidão por conveniência política, resolveram fingir que a lideravam por princípios. A partir desse momento a perpetuação do medo era a única opção na mesa e este foi copiosamente alimentado por uma propaganda tacitamente acordada entre as elites políticas, económicas e sociais, como nunca se tinha visto em quatro décadas de democracia. Portugal não foi neste caso exemplo único, mas é o exemplo que aqui tratamos.
Foi por esse motivo, porque sentia que a maioria da população o apoiava e que, dando-lhe o que esta julgava necessário, lhe garantiria a continuação no poder que o nosso Primeiro-Ministro ousou afirmar que o governo avançaria com medidas que violavam a liberdade dos cidadãos dissesse a Constituição o que dissesse. Tamanha sobranceria só foi possível porque Costa sentia as costas quentes. Aos poucos que se lhe opunham, o governo atiçou os subservientes esbirros armados em especialistas, que pululavam por uma comunicação social maioritariamente de mão estendida à publicidade governamental, já que a Constituição, ao contrário de muitos media e redes sociais, ainda protegia o direito dos indivíduos a expressar-se livremente. Foi por isso que esses poucos, indivíduos isolados, com pouca ou nenhuma capacidade de organização, foram brindados com a alcunha de “chalupas” e desqualificados de todas as formas possíveis (anti-vacinas, anti-ciência, anti-sociais, etc.) independentemente dos motivos que os moviam. No entanto, e em 23 ocasiões, o Tribunal Constitucional esteve maioritariamente constituído por chalupas que condenaram a actuação do Poder Executivo. Já o Governo e – não esqueçamos – o Presidente da República actuaram como cobardes que, em vez de aplicar a Constituição e defender a liberdade dos cidadãos contra a opinião da vasta maioria, colocaram-se na linha da frente do liberticídio, sob forma de linchamento popular da opinião de todos aqueles que não comungavam com a histeria das massas.
Só que a multidão é um animal esquivo e difícil de domar, e os políticos tendem a sobrestimar as suas capacidades. Como ouvi uma vez alguém dizer, a populaça de Roma seguramente aplaudiu quando Calígula nomeou o seu cavalo procônsul. Em Portugal, os políticos também julgaram que podiam manter indefinidamente o aplauso de uma população em pânico contra uma doença contagiosa que, após uma primeira vaga para a qual a generalidade da população tinha poucas defesas naturais, não foi mais perigosa nem mais mortífera que a gripe comum. Se a variante Ómicron revelou a futilidade de vacinar populações inteiras e levá-las pela vida permanentemente mascaradas para impedir um contágio a larga escala, a Economia obrigou as pessoas a sair à rua para enfrentar esse tal perigo pandémico que, afinal, era muito menor que o perigo de cair na pobreza. Pouco a pouco, tornou-se evidente a imprudência de muitas medidas que, não só não estavam avaladas pela ciência como nos juravam a pés juntos, como eram contrárias à prudência médica mais elementar. Aquela que a sociedade tinha acumulado como conhecimento válido durante décadas de investigação nos laboratórios e práxis nos hospitais. O circo mediático que bombardeava a todas as horas números de falecidos e taxas de vacinação sem qualquer outro critério que não fosse o sensacionalismo começou discretamente a sair de cena, como ratazanas a abandonar um navio que se arruína.
É evidente que a maré mudou. Que a população que durante dois anos se dedicou a insultar chalupas, começa agora culpar o governo pelas más decisões tomadas e pelo preço que paga em impostos, inflação, desemprego e estagnação económica. Com a agravante de muitas das medidas que resultaram dessas más decisões terem sido implementadas contra o critério da Constituição, isto é, de forma manifestamente ilegal. É por esse motivo, e por nenhum outro que, sob a justificação de “reforçar a segurança jurídica da Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública”, o governo pretende alterar a Constituição. Para que esta deixe de o acusar e possa inclusivamente ser utilizada na sua defesa. Como disse o Presidente da República: “é preciso deixar tudo bem certinho.” O facto de esse acerto deixar ainda mais desprotegidos os cidadãos, que têm na Constituição a lei que os protege contra os abusos do poder político é uma questão que não coloca ao nosso Chefe de Estado nenhum dilema ético.
Isto é triste. O actual regime já não encontra um político que acredite nas suas virtudes. Que assuma plenamente a sua ética, quer dizer, que esteja disposto a defender os princípios que regem o Estado quando estes actuam contra o interesse particular dos governantes. Quando assim é resta a propaganda. Propagandear que se vive num Estado de Direito enquanto se procura mudar as regras do jogo que não são coniventes com o Poder. Assistimos ao estertor de um regime que fracassou. Que prometeu muito e entregou pouco. E o pouco que entregou, ou bem pediu emprestado ou bem extraiu aos europeus, em ambos casos para entregar, em primeira instância, aos seus favoritos. Em primeiro lugar porque nunca foi um regime que confiasse nos portugueses. Que acreditasse que estes fossem capazes de utilizar, para benefício próprio e da sociedade, a vida, a liberdade e a procura da felicidade a que diz que têm direito. Condicionado desde o princípio por uma transição para o socialismo que, não sendo o Marxista-Leninista, é a de um estado que quer controlar tudo (a saúde, a educação, a cultura, o empreendedorismo, etc.) e que se vai convertendo num empecilho para a vida das pessoas, em particular daquelas que têm que produzir alguma coisa de valor para poder sobreviver.
O problema de um estado com tal irresponsabilidade no exercício do poder, para além da incapacidade económica de operar com um mínimo de eficiência, é que atrai os piores e fomenta aqueles com talento para operar em teias de favores e tráficos de influências. Ao mesmo tempo, só deixa eleger para os cargos mais importantes indivíduos que pactuem com a exacção sistematizada da riqueza. Indivíduos que não conseguem, ou não querem, ver mais além do próximo ciclo eleitoral, incapazes de dotar as instituições de uma autonomia que não lhes salve as nádegas e os penalize quando cometem erros tão graves como os que cometeram nestes dois últimos anos. Em suma, o regime português promove indivíduos que não se podem dar o luxo de operar sob uma Constituição que permita aos governados abolir o Governo quando este se converte numa entidade que destrói os seus direitos. Um Governo como aquele que desejaram um dia os Founding Fathers, artífices do estado moderno em vias de extinção.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.