Poderá parecer estranho falar da necessidade de preservar hoje uma conquista da civilização que remonta a mil anos e setecentos anos atrás. Mas é isso que se verifica. A conquista em causa é a do Domingo como dia de descanso comum. Foi a três de março de 321, há mil e setecentos anos, que o imperador Constantino determinou que o Domingo fosse um dia de descanso comum. A efeméride foi recordada pela European Sunday Alliance (www.europeansundayalliance.eu), uma plataforma que congrega organizações cristãs de várias denominações, associações de famílias e confederações sindicais de várias tendências políticas.

A decisão do imperador Constantino é um fruto direto da difusão do cristianismo no império romano. Trata-se de uma medida que protege o culto cristão, mas também o trabalhador diante de quaisquer formas de exploração laboral. Desde esse início, o Domingo revestiu-se desta dupla dimensão: um dia para Deus e para o bem da pessoa humana. Estamos perante um claro exemplo do valor do legado da cultura cristã para a história e cultura europeias

Ao longo da história, muitas vezes houve que recordar o mandamento da santificação do Domingo, sempre na sua dupla faceta de dia de culto a Deus e de descanso, diante de contínuos atropelos. Foi assim na época da revolução industrial, quando o Papa Leão XII recordou esse mandamento e a necessidade de a legislação civil permitir a sua observância na encíclica Rerum Novarum (muitas vezes qualificada como uma espécie de “magna carta” da doutrina social da Igreja).

A proibição geral do trabalho ao Domingo (que sempre teve exceções, justificadas pela máxima, que também decorre do Evangelho, segundo a qual «não é o homem para o sábado, mas o sábado para o homem») é uma exigência de respeito pela liberdade religiosa dos cristãos, que se mantém mesmo que estes sejam minoria, ou que dos que assim se afirmam sejam minoria os que cumprem o dever de culto dominical.

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Mas essa proibição é também uma exigência do respeito pela pessoa humana que trabalha. É um travão à prevalência de uma lógica economicista que reduz a pessoa a instrumento de produção e de consumo. É um corolário do princípio de que o trabalho e a economia devem estar ao serviço da pessoa, e não o contrário. Permite um oásis onde dominam relações de gratuidade dentro de um contexto onde ela está normalmente ausente. Pode considerar-se uma componente de uma verdadeira ecologia humana e social, na medida em que contribui para a plena realização da pessoa de acordo com o seu desígnio natural. Contribui para a saúde física e psíquica, pessoal e comunitária.

Hoje, a proposta de suprimir o Domingo como dia de descanso comum vem normalmente acompanhado da invocação da liberdade individual: bastaria salvaguardar um dia de descanso que não tem de ser comum, que pode variar de pessoa para pessoa, de acordo com a sua opção livre.

Contra essa proposta, há que salientar, por um lado, como no âmbito das relações laborais as opções estão grandemente condicionadas: muitas vezes o trabalhador aceita condições (como poderá ser a de trabalhar ao Domingo) apenas porque a alternativa a essa aceitação é o desemprego. É essa realidade que subjaz ao direito do trabalho.

Mas o que deve, sobretudo, ser salientado contra tal proposta é a natureza relacional da pessoa humana. A pessoa realiza-se plenamente não no isolamento, mas no relacionamento com outras, na família, antes de mais, e nas várias comunidades em que se insere. Por isso, é necessário um dia de descanso comum. Esse dia é importante para a vida familiar: esta estará sempre comprometida se os vários membros da família descansarem em dias diferentes. E é importante para a vida comunitárias: para o culto e as atividades religiosas (porque a religião tem uma dimensão comunitária que não pode ser ignorada), para a vida das mais variadas associações que dependem do voluntariado, para muitas formas de empenho cívico, para atividades culturais e desportivas.

Tudo isto é salientado na declaração da European Sunday Alliance que assinala a efeméride dos mil e setecentos anos do decreto do imperador Constantino que impôs o Domingo como dia de descanso. Nessa declaração são também salientados os problemas (hoje mais evidenciados) decorrentes da generalização do teletrabalho e a importância do “direito a desconectar” em momentos como os do Domingo. E é evocado o artigo 2.º, 5) da Carta Social Europeia, que consagra o «direito a um dia de descanso semanal que coincida, tanto quanto possível, com o dia de descanso reconhecido como tal pela tradição, ou pelos usos do país ou da região».

Convém salientar também que países em mais se tem feito sentir a resistência ao trabalho ao Domingo, como a Alemanha (onde esta causa tem mobilizado múltiplas forças sociais), não deixam, por isso, de ser economicamente prósperos.

É nestes termos e por todos estes motivos, que o Domingo como conquista civilizacional que remonta a mil e setecentos anos atrás, fruto direto das raízes cristãs da cultura europeia, deve hoje ser salvaguardado.