A tentação, em muitas discussões eclesiais, é sermos unívocos: ou é isto ou é aquilo. Aliás, deste desejo nasceram as heresias, absolutizando a parte de um todo. Ou é Deus ou é homem, mas é Deus e é homem. Cristo é cordeiro (Jo 1,29) e é pastor (Jo 10,11), é o Ressuscitado que almoça com os discípulos (Jo 21,12), mas é também Aquele que, estando as portas fechadas, atravessando paredes, se põe no meio dos discípulos (Jo 20,19). A vida não se reduz à homogeneidade ou à simplificação, porque a realidade é complexa e assume contornos específicos. O humano vive imerso numa realidade que não se pode reduzir a branco ou preto.

1. Do testemunho vivo da verdade e da liberdade

Nestes últimos tempos, neste terreno humedecido, surgiram como cogumelos em terra maninha críticas ao Posicionamento Institucional do CNE acerca da afetividade e da sexualidade no programa educativo. Ainda bem, digo eu, porque são louváveis, sobretudo se nascem de um exercício atento às mediações próprias das ciências (GS 44), que contempla a complexidade da realidade à luz do Evangelho, que não dá sentido de modo abstrato nem à margem da vida, mas que reconhece os sinais dos tempos (GS 46).

Se os comentários e reações estão ancorados nestes pressupostos, diria Sophia de Mello Breyner, é como um fruto que mostra / aberto pelo meio / a frescura do centro. Ora, quando assim não é, cedemos a uma atitude anti-evangélica distante da situação concreta e das possibilidades efetivas de cada humano. E, assim, facilmente se afirma que o Posicionamento Institucional está em rutura com a Tradição da Igreja.

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2. Da fidelidade à Tradição

O documento não apresenta quaisquer ruturas doutrinais, mas o desenvolvimento fiel da doutrina cristã. Ou será que queremos dar assuntos por encerrados, quando, na realidade, estão vivos e presentes no meio de nós? A tentação de musealizar a tradição no passado, de fossilizar o humano em essências abstratas e atemporais, acreditando que está já tudo dito e fechado, como se a doutrina não tivesse nada a dizer à vida das pessoas, ou como se a vida fosse inútil para a doutrina, é mais devedora dos desejos do que propriamente dos factos e dos argumentos.

Na verdade, o desenvolvimento da doutrina traz mudanças, as quais não são uma inversão da Tradição, mas uma interpretação fiel à mesma. As mudanças por fidelidade à Tradição não são degradação do património da fé, mas uma exigência que advém do mistério da Encarnação. O desenvolvimento doutrinal é o desvelamento progressivo da Verdade revelada, que já está completa, mas que nós ainda procuramos conhecer para viver, recebendo-a na história, não estando, por isso, imune às condições históricas e culturais daqueles que a buscam (DV 8).

Afinal, perguntar-se-á o leitor, o que diz o Posicionamento Institucional? O CNE crê no amor incondicional de Deus por todos, na verdade e singularidade da condição existencial de cada um (Cf. Is 43,1-4), na qual se inclui também a orientação sexual. Em fidelidade ao magistério, afirma-se a absoluta integração de todos, seja qual for a situação em que se encontrem, e a missão de ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial (AL 250).

O desafio que o CNE abraça é ousado porque – e talvez neste ponto resida a fonte das críticas a este documento – se deseja acolher e dar lugar efetivo, na Igreja, a todos os batizados e, por isso, também a quem se identifica como homossexual. O mais cómodo seria fingir que não há necessidade do acompanhamento pastoral de pessoas homossexuais, como se de uma moda cultural se tratasse ou de uma patologia da qual curar-se. Todavia, de que serviria tudo isso se, hoje, não fosse capaz de testemunhar a alegria e a esperança do Evangelho diante das situações concretas que afligem os humanos?

3. Do sabor do Evangelho: o discernimento

Este Posicionamento Institucional é uma interpretação fiel à Tradição, convocando-nos a dar primazia ao discernimento, o qual não altera as afirmações doutrinais, mas o modo como se busca a Verdade, que é Jesus Cristo. Quando o discernimento é mal interpretado, dizendo-se que resvala para o terreno da pura subjetividade, considera-se que o documento não esclarece todas as situações e cria questões. Na verdade, seria mais fácil ditar, de modo claro e distinto, as normas objetivas de forma autoritária, blindando-nos na rigidez, esquecendo-nos de que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais (AL 3). Talvez nos custe dar espaço à consciência dos fiéis que, muitas vezes, respondem o melhor que podem ao Evangelho, dentro dos seus limites. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las (AL 37).

O mencionado texto do CNE, ao conjugar o discernimento com a verdade e consciência (GS 16), supera a lógica do mero cumprimento e a tentação de reduzir a vida cristã a parâmetros do cálculo ou à mediocridade do sim ou não, do pode ou não pode. As soluções não são válidas ao mesmo tempo ou em todas as situações, nem há uma única resposta que se aplica em todos os casos. O discernimento não determina o estado da graça de uma pessoa, nem as suas possibilidades concretas com o fim de adaptar a lei moral às mesmas (J. Granados, S. Kampowski e J. Pérez-Soba), mas, conduzido pelo Espírito de Deus, sem diminuir a exigências do Evangelho, procura-se, em consciência, a vontade de Deus no concreto da própria existência. Assim, busca-se livremente o caminho pelo qual Deus está a chamar, na sua situação específica, para que se viva a vontade divina nas condições histórias que se vivem (Julio Martínez, sj).

Aliás, no agir de Jesus, apercebemo-nos de que Ele se recusava a repetir princípios doutrinais estéreis, mas, convidando ao discernimento e apelando à consciência, propiciava oportunidades de crescimento ajustadas ao ritmo daqueles com quem se encontrava (cf. Jo 4,1-42). Portanto, mais do que sermos meras fotocópias da lei ou servos obedientes das normas universais, é crucial considerar-se a historicidade de cada ser humano e da sua progressiva humanização, que revela a sua singularidade enquanto sujeito histórico e circunstanciado.

O Posicionamento Institucional do CNE, em fidelidade à Tradição, sem simplificar a realidade, convida a que se procure a vontade de Deus no concreto da própria existência, para agir mediante uma resposta plena. Em suma, conjuga o discernimento com a verdade e consciência, sem direcionar a vida moral para o subjetivismo, o qual absolutiza a liberdade humana, ou para um objetivismo, que se reduz a mera ressonância da lei. Não está dito que irá ser fácil, mas será, indubitavelmente, mais evangélico, porque assim agiu o próprio Cristo.