Haverá tontinhos convictos da inocência do regime cubano. Mas a maioria, entre os que vemos por aí a exaltar a herança de Fidel, sabe. Eles sabem da opressão, da miséria, da fome, das perseguições, da censura, do racismo, da homofobia, das prisões, dos homicídios e do sangue. Sabem e não se importam. E não se importam porque acham necessário. E acham necessário porque para eles a vida humana é uma abstração secundária face ao que tomam pela realidade fundamental: a defesa de uma ideia a que se convencionou chamar socialismo. Trata-se, claro, do mundo ao contrário, e de uma ironia pesada. A existência – e o sofrimento – das pessoas é para eles descartável, e em larga medida imaginária. Já uma alucinação teórica com resultados comprovadamente catastróficos é a verdade palpável, e a única que lhes interessa.
Assim, eles sabem que a monumental desgraça dos cubanos não deve ao embargo americano, à “situação económica derivada da pandemia” (juro) ou a qualquer das esfarrapadíssimas desculpas do óbvio: um povo que há sessenta e tal anos caiu nas mãos de uma oligarquia de psicopatas com o inevitável talento para a corrupção. A questão é que eles gostam genuinamente dos psicopatas. Razões? Várias, ou no fundo a mesma. Os psicopatas são marxistas. Os psicopatas são inimigos dos Estados Unidos. Os psicopatas não são uma democracia. Os psicopatas são a negação dos valores que definiram, e convinha que continuassem a definir, o Ocidente. Os psicopatas são psicopatas. E a esquerda, em Portugal representada pelo PCP, o BE e largas porções do actual PS, aprecia psicopatas.
A História não engana. Com escassas excepções, onde há tiranos ou aspirantes a tiranos capazes de horrorizar nações “normais”, a esquerda aparece logo a venerá-los. Em rigor, a esquerda até dispensa o socialismo estrito: seja de que variante forem, os espíritos totalitários tendem a aproximar-se. Na República de Weimar, os comunistas consideravam os nazis um aliado tácito contra os sociais-democratas. Na crise das Falkland, a Argentina protofascista foi nitidamente preferida em detrimento do Reino Unido da sra. Thatcher. O Iraque de Saddam Hussein passou a ser visto com simpatia a partir do momento em que, com a invasão do Koweit, provocou a reacção militar dos EUA. E não consta que o Irão ou Gaza sejam governados a partir dos escritos de Engels ou Mao. A ideologia é afinal de somenos: o critério essencial para suscitar a admiração da esquerda é a ausência de democracia. Se há representatividade e legitimidade, a esquerda desata de imediato a uivar em prol dos oprimidos. Se há oprimidos a sério, a esquerda quer que os ditos se lixem e aplaude, nas ruas ou em recato, a respectiva opressão. É absurdo? Não é por acaso que o absurdo e a esquerda são sinónimos.
Regressando a Cuba, salvo seja, a brutal hipocrisia da esquerda não sobrevive ao Teste da Jangada. Não é um teste complicado. De um lado, temos um país de onde as pessoas fogem em condições pavorosas da prisão provável e da indigência garantida. Do outro, temos um país que os recebe e lhes permite prosperar de acordo com o seu empenho, a sua habilidade ou a sua sorte. Adivinhem qual o país que a esquerda adora e qual o que a esquerda abomina (para os idiotas terminais, esclareço que o ponto de origem é Havana é o ponto de chegada é Miami – apesar das bazófias, nem idiotas terminais fariam o percurso inverso). O teste não termina aqui. Visto que falamos de refugiados, infelizes ao Deus dará que no “contexto” correcto encheriam as manchetes com sentimentalismo, é de presumir que a esquerda demonstre ao menos um vestígio de apreço pela sociedade que os acolhe e, por coerência, condene a sociedade que os afugentou. Nada disso. A esquerda detesta com indisfarçado vigor os cubanos da Flórida, na medida em que a liberdade de que beneficiam na América torna mais evidente a falta de liberdade em Cuba. Nas Caraíbas e em toda a parte, o pobre deixa de ser útil para a esquerda quando deixa de ser pobre. O Teste da Jangada não se limita a revelar hipocrisia: revela os abismos de selvajaria a que a humanidade pode descer.
Há meses, aproveitei uma destas crónicas para explicar a um amigo da direita “ecuménica” o motivo pelo qual não sou amigo de criaturas de esquerda: o ecumenismo não é recíproco. Se me pedirem para desenvolver, desenvolvo e aplico a cada indivíduo a noção que alguns sábios do século XX aplicaram colectivamente ao comunismo e ao fascismo: o totalitarismo não é consequência do sistema, mas o sistema propriamente dito. É chato tomar café com alguém que, nas condições propícias, não hesitaria em enfiar-me num calabouço para efeitos pedagógicos. Nas condições vigentes, comparativamente suaves, não hesitou em exigir que nos fechassem em casa, a mim e aos restantes portugueses que não integram a oligarquia. E agora prepara-se para exigir a abolição de direitos a quem, vacinado ou não, resistir ao apartheid em curso.
A Covid, por exemplo a Covid, mostrou o que move o esquerdismo se despido do ligeiríssimo verniz social: proibir, denunciar, castigar, discriminar, afinal desprezar com religioso fervor os homens e as mulheres reais. Os assassinos que mandam em Cuba não precisam do verniz nem da Covid: ali, e não tarda aqui, o desprezo é lei. Convinha que fosse crime. O esquerdismo é um crime de ódio.