1. António Costa disse há dias que estava preocupado com o que o país pensava do PS. Espanta-me que não esteja preocupadíssimo com o que o PS pensa do PS.

Ao contrário do PSD, cuja pele regenera em minutos de qualquer ferida – estão aí quatro décadas a provar que a vida no PSD segue como se nunca houvesse “ontem” –, o PS não. As feridas dóiem, deixam rasto, a cicatrização é dolorosa. Os estragos provocados por brigas e batalhas (lembram-se de Guterres versus Sampaio?) abriram sempre sulcos profundos na familia socialista, foram precisos anos para que o tecido se refizesse e já nem falo só do “afecto” de que o partido se reclama por contraponto ao PSD. Falo de convivência política após o incêndio do ressentimento e do acinte ácido com que se degladiam hoje, diante de nós, as tropas de dois generais: um, demasiado inseguro; o outro, excessivamente seguro.

Nem a silly season habitualmente arredia destes temas vai desta vez ignorá-los, os estilhaços são de largo espectro. Por outras palavras: o vencedor do próximo Outono cortará a meta com um partido dividido e militantes machucados. E mesmo que o cheiro do poder tenda a unir e recompor, haverá feias marcas e amargas memórias. É lá com eles? Não, não é só com eles. Trata-se de um partido de governo, o maior da oposição, e seria péssimo para Portugal que, em caso de vitória eleitoral, chegasse coxo e azedo à tremenda prova do poder.

 

2. Isto por um lado. Por outro, onde está a “diferença” promissora? Essa que os socialistas afirmam ter e a direita governamental não? Ideias, propostas, futuro, país?

Para onde vai querer mudar esse grande mundo descontente que – há quem diga – está sôfrego por outra morada? Que distingue essa morada e lá dentro que a recheia? Pode ser que os generais estejam a guardar os respectivos trunfos de salvação nacional, mas até ao momento a substância é pouca em ambos os lados desta barricada.

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Como quase sempre até aqui, aliás: durante três anos testemunhou-se um PS confortavelmente sentado na plateia oposicionista (nunca sujou as mãos em nada), exibindo o desprezo do sitiante. E nada se ouviu que (aparentemente) ao país apetecesse reter, seguir, confiar, substituir, aplicar. Sempre que se contaram votos (autárquicas e europeias) foi isso que se provou: o povo serviu-se com enorme moderação da mesa socialista.

Sim, escutou-se a litania do “crescimento económico” (carregando em que botão?) e o monocórdico pedido de “mais tempo e mais dinheiro”, sabendo porém os dirigentes socialistas que as coisas são o que são “nesta” actual Europa e que, por enquanto, as regras vigentes desaconselham utopias. Mas, enfim, é de borla fazer de conta que há um botão para carregar no crescimento económico e de graça dizer que “se” ia de patins a Bruxelas/Berlim fazer um número (para consumo interno).

É verdade que a vida se move por vagas e movimentos, as coisas mudam de direcção e às vezes de natureza. Um dia Merkel pode virar a cabeça e Bruxelas pode virar o cabo, mas isso ainda não aconteceu. Por muito que incansavelmente os socialistas portugueses nos jurem que com eles… virariam! Não resume o PS toda a complexidade desta questão a um bater de de pé a essa gente “europeia” que pensa que manda em nós? (E não passou ele pelo caso Hollande da pior maneira possível? Primeiro acreditando que o Presidente francês era a salvação da França, da Europa e deles, socialistas portugueses; depois, não tirando sombra de ilação da sua vertiginosa marcha atrás.)

Sim, também recordo as várias medidas (oitenta?) recentemente tornadas públicas, num contrato de confiança, e que supostamente constariam do menu do governo socialista quando este visse a luz do dia. E na elaboração das quais naturalmente se misturaram as ideias e as assinaturas de “costistas” e “seguristas”. Mas agora que a artificial união de de ontem deu lugar à guerra civil de hoje, sobram dúvidas e perguntas.

 

3. Logo à cabeça, que fazer com o passado? Disfarçá-lo, como sempre fez inutilmente Seguro, ou glorificá-lo, como quer intencionalmente Costa – sabendo que ambas as soluções são péssimas?

E sobre o fantasma do PEC IV? Fingirão que não o vêem, como fazem os de Seguro, ou continuarão a fazer-nos crer que teria sido salvífico, como insistem os amigos de Costa? (Não se sabendo aliás se uns e outros o leram, se conhecem as draconianas medidas a que obrigava, e se sabem até que algumas delas integraram muitos dos mandamentos da troika…) Seja como for, o interessante aqui é sublinhar que as duríssimas exigências a que aludo eram recomendáveis e humanas quando integravam o PEC IV, mas humilhantes e inhumanas quando ditadas pela troika. Sim, as mesmas medidas. Concordar-se-á que não há porventura melhor exemplo de uma atitude e de uma cultura do que este episódio do PEC IV…

Em resumo: como vão os socialistas lidar com seriedade com estes últimos três anos? Com a “intervenção estrangeira” que o então governo socialista pediu, com o programa de ajustamento que assinaram, com a sua directa responsabilidade no estado de coisas em 2011? Colocar-se-ão atrás do biombo dos males “internacionais”? Continuarão a atirar-nos à cara com um parágrafo de um célebre (e mal lido) documento de Bruxelas que aconselharia (?) os países da UE a gastar dinheiro para regar a economia? Continuarão, em suma, a não aprender nem esquecer?

Parece que sim: o passado nunca existiu, a bancarrota também não, nunca pediram ajuda, não assinaram memorando nenhum, não houve culpa nem pecado. Houve chatices lá fora que desaguaram cá dentro. E no entanto impunha-se um balanço: militantes, simpatizantes e portugueses agradeceriam.

 

4. Um tal Mateo Renzi do Partido Democrático italiano entrou nas últimas eleições europeias a cavalo na diferença. Na forma e no fundo, na mente e nos processos, nas prioridades e nas ideias que ele quer que sirvam a política e, com isso, a Itália. Outra cultura de mudança. Renzi partiu, rompeu, fracturou, mudou. Aprendeu e esqueceu. Não se sabe o futuro, mas o início faz-nos pelo menos ficar de olho atento. Uma brisa fresca sobre a política, um vendaval sobre a esquerda.

Por aqui, céu nublado.