Tido como desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578, D. Sebastião deixou um legado profético aos portugueses, uma herança destinada a perdurar mais do que a vida do jovem rei, a ir, também, além dela em termos de simbolismo e significância no nosso imaginário coletivo.

Como impacto de efeito imediato, emergiu a miragem de um regresso nobre e salvador de D. Sebastião, irrompendo por uma ainda hoje famosa manhã de opaco nevoeiro, qual panaceia não só para os problemas advindos do seu desaparecimento, mas também para os defeitos do Reino, que na segunda metade do século XVI já não se revestia da opulência e grandiosidade das primeiras décadas desse século. O Reino perdera, então, o paladino da sua esperança, o jovem líder de uma nova geração, trilhando caminho para o que viria a ser uma nova panóplia de dívidas e o domínio castelhano a partir de 1580, com a dinastia filipina, até 1640.

Esta imediata reação, expectante do regresso do Rei-Salvador, foi sendo continua e misticamente nutrida até se transformar num messianismo mirabolante e miraculoso, catapultado pelo Padre António Vieira e genialmente reconstruído, ou recapturado pelo sempre genial Fernando Pessoa na sua Mensagem. Ambos tenderam para uma interpretação sebastiânica da História de Portugal, diferente em forma e conteúdo, ainda que sob a mesma cúpula: a preconização do Quinto Império, lusitanamente capitaneado. Fernando Pessoa, entre muitos outros, deu voz a este Quinto Império teorizado pela Renascença Portuguesa, almejando um patriotismo esquecido, perdido num campo de batalha numa praia africana, um reinado além-material: um império espiritual e civilizacional. “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão/ Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade/ Que morreu D. Sebastião?”, escreve Fernando Pessoa na Mensagem, no papel de estafeta que nos vem apresentar um regenerado culto messiânico.

À semelhança do que aconteceu na passada crise financeira, vimos reunirem-se, como consequência da pandemia que temos vivido, as condições fundacionais – insatisfação com a situação política atual e um desejo de mudança, de salvação face ao atual panorama sanitário – para que o camaleónico sebastianismo português se metamorfoseie uma vez mais. Metamorfose essa copiosamente defendida e proclamada pelas inúmeras vozes que pressagiam o “fim do capitalismo” ou o “fim do neoliberalismo”, derivado do surgimento e expansão da COVID-19.

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O sebastianismo é, assim, incorporado no contemporâneo findoísmo. Os sebásticos findoístas, que fitam “com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado (…)”, parecem ter como Quinto Império o ressurgimento de um passado fausto, um passado heroico onde o capitalismo não tivera espaço para se enraizar e crescer, e se desdobrar nas suas consequências nefastas, como, por exemplo, o notório aumento da qualidade de vida do ser humano, em termos gerais, e a promoção da sua liberdade política, social, económica, de circulação, e tantas outras. O sistema capitalista vigente tem bastantes falhas, conhecidas e apontadas, mas certamente não terá sido a causa desta crise sanitária, ainda que tenha acelerado a sua inevitável expansão através do seu caráter globalista. Inevitável, entenda-se, para quem não tem em especial apreço um regresso a um passado mais limitado às fronteiras do país em que nascemos, mais limitado às restrições dos berços. Não estando na origem desta crise, certamente o capitalismo estará na génese da sua cura, através da ciência, partilha de informação e cooperação entre Estados. Vetores que, dentro das atuais hipóteses, só o capitalismo consegue eficazmente potenciar. Verificamos, portanto, o findoísmo seguir a nuance patente em todos os mitos: a derrota do racional perante o emocional, a adoção da crença em detrimento da razão.

Os findoístas repescam o Mostrengo, o tal “(…) mostrengo que está no fim do mar/ Veio das trevas procurar/ A madrugada do novo dia/ Do novo dia sem acabar.”. Com o fim do capitalismo, e que mar o é o capitalismo!, excitam-se com a aurora desse novo dia eterno, anacrónico, iniciado com as badaladas que indelevelmente comuniquem a morte do neoliberalismo, a morte da possibilidade de uma liberdade plena, a morte do píncaro da independência dos indivíduos face a um poder fortemente centralizado. As badaladas têm vindo a ser anunciadas em vários momentos da história moderna (e o seu apelo surgirá provavelmente em muitos outros no futuro), mas não foram, felizmente, ainda cumpridas. Outras distintas vozes têm tido, recentemente, um palco maior em Portugal: vozes conscientes da imperfeição do sistema atual capitalista e das desigualdades que inflige ainda a demasiada gente, em demasiados lugares. Vozes que, não obstante, urgem a uma maior liberdade, acreditando que “Deus ao mar o perigo e abysmo deu,/ Mas nelle é que espelhou o céu.”. Mar esse que só poderá ser cruzado tendo como nau a liberdade. A liberdade, a “voz da terra ansiando pelo mar.”.

Como é tradicional nos mitos, o sebastianismo, defronte de momentos históricos pautados por uma crise substantiva, adapta-se a essa realidade do presente e adquire a forma de uma esperança mapeada num futuro menos sofrível, mais justo e abundante. Os findoístas justamente construíram a sua visão. Eu desejo, na mesma onda, que “(…) outra vez conquistemos a Distância (…)”, mas que vençamos esta Distância, o confinamento, a pandemia e o momentâneo poder acrescido do Estado para a combater sem a isso nos habituarmos, sem disso ficarmos dependentes.

Que jaz no abysmo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.

Desejar poder querer mais liberalismo. Desejar não o fim do capitalismo, mas o seu melhoramento.