Cada um viaja como pode, nestes enclausurados tempos. Um ano volvido, acredito que ao normal se possa, finalmente, subtrair o irritante epíteto de novo. É somente o normal, aquele que nos tem embalado e por embalados nos toma. Aquele que dentro em breve, espero, começará a sofrer outra transformação, tal como todos os novos, velhos e atuais normais da História, demasiado rápidos para os alcunharmos e lentos para uma alcunha lhes descobrir.

Melhor será dizer que viajamos como nos deixam, no limite do permitido pelo nosso código postal e passaporte.

Ontem, aqui confesso, viajei. Viajei como pude – entre conselhos ao invés de concelhos –, conduzido pela onírica e mística visita do Espírito do Cancelamento do Futuro. Apareceu-me de rosto oculto, vestindo todas as cores e vozes do mundo.

Quiçá por não me ter sentido particularmente iluminado, muito pelo contrário, pelas novas investidas dos colonizadores do pensamento (perpetradas pela Universidade de Manchester e , ainda que infrutiferamente, pelo Conselho Económico e Social) tenha dado entrada na lista dos hereges desta nova religião. Ou a população herege, ainda carente de doutrinação através da linguagem “neutra e inclusiva”.

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Linguagem “neutra e inclusiva”. Soa-me sempre bizarro. Se o objetivo é armar a linguagem como instrumento de qualquer interseccional conceito, como pode ser “neutra”? A linguagem é, por natureza, neutra em certo sentido, deixando-o de ser, assim que por nós veiculada, pois que a utilizamos sempre (ou quase sempre) com um propósito. Apresentar esta novilíngua como “neutra e inclusiva” é, provavelmente, o primeiro ensinamento: o de que esta instrumentalização é, na sua essência e por tão orgânica nos ser, neutra. Claramente não o é.

Relato-vos, então, a minha experiência, o que me foi dado, por sorte, a conhecer. O terrível futuro que encontraremos caso não continuemos a caminhar, de forma mais árdua, com menos pausas, para o Olimpo da neutralidade e inclusão.

Nesse nefasto futuro, a arquitetura continua a oprimir os anafados. Estruturas e formas obscenamente curvilíneas, como que manifestando uma espécie de gozo por quem, muito contra a sua vontade, possua mais volume, devem ser alvo da maior contestação pública. Até que a pó e cinzas regressem. Como exemplo, o Espírito teletransportou-nos para o MAAT, que deverá ser demolido.

Pairando sobre Belém, apontou-me também o Museu da Eletricidade, que informa os seus visitantes acerca das duras condições impostas a quem lá trabalhava, durante os áureos tempos da Central Tejo. Não há nada que ver, nem nada que ensinar, porque o enquadramento pedagógico do passado como forma de melhorar o futuro é algo imperialista, a ser rapidamente suprimido. Para completar o périplo belenense, bastou atravessar a linha de comboio e planear a destruição do Museu Nacional dos Coches. Haverá lá insígnia mais ofensiva e suja do que aqueles dourados coches, outrora património dos privilegiados?

Para evitarmos aterrar nesses vindouros anos, ainda poluídos pelo nosso passado e pelo passado que, até lá, há de chegar, temos de começar a falar de altura, sendo inclusivos para com as pessoas de estatura média e inferior.

Nada de baixos e baixas, nem de população baixa. Levemos a purificação ainda mais longe e olhemos para os nomes das nossas aldeias, vilas, cidades e regiões. Ninguém reparou ainda na perseguição implícita em “Beira Baixa”? Beira Não-tão-alta-como-a-Alta, por favor.

Inexplicável, também, as cidades que se pavoneiam por aí com palavras que remontam a tempos feudais, cavados por inigualáveis desigualdades. Viana do Castelo? A minha bela cidade natal … não há hipótese, nem outro atalho que não a tenacidade. “Viana do Terreiro” ou “Viana da Eira” serão alternativas. Outros equitativos nomes poderão surgir.

O nunca espirituoso Espírito explanou-me, por último, um processo para atingir a neutralidade plena. Um processo gradual, cuja pedra angular é a utilização da palavra coisa. Passo a exemplificar através do suspiro de António Lobo Antunes: “Eu gosto desta terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto.”

O primeiro passo será, apenas, a substituição dos adjetivos, passando na mesma a ideia de ação e posicionamento espacial e temporal. Porém, a sentença perde laivos passíveis de ofender alguém. É que basta uma pessoa! Eu gosto desta terra. Nós somos coisos, coisos, coisos, mas eu gosto disto.

O segundo, reservado para quando a população a doutrinar tiver atingido um estágio superior de inclusão e compreensão, será a rendição dos nomes e advérbios, para que a frase, ainda com um intuito patente, se torne mais abstrata, desprovida das circunstâncias. Como podem ver, tudo o que não for “esta terra” não se sentirá menorizado. Eu gosto desta coisa. Nós somos coisos, coisos, coisos, mas eu gosto disto.

A derradeira etapa é a total aniquilação da ação, como sublime reflexo da sociedade que nunca oprime, despreza, magoa ou ofende, porque nada faz ou diz. Eu coiso desta coisa. Nós coisos coisos, coisos, coisos, mas eu coiso disto.

Na verdade, ainda seremos capazes de dizer muitas coisas, mas de tão coisificados que estaremos, não haverá necessidade para excessiva variedade e criatividade verbal, porquanto será impensável algo ou alguém que fuja à cartilha, ou, termo mais contemporâneo, ao Manual.

P.S.: Aguardo com ânsia o Espírito do Cancelamento Passado. Não porque os seus mensageiros do presente não emanem já um certo déjà vu de censuras de antanho. Contudo, adoraria sobrevoar os monumentos que hoje teríamos para destruir em Lisboa, não fosse o terramoto de 1755.