Em 2006, o intelectual francês Pierre Manent publicou um pequeno ensaio intitulado A Razão das Nações: reflexões sobre a democracia na Europa, motivado pela “perceção quase dolorosa de um fenómeno [que] escapa cada vez mais à consciência comum, ao mesmo tempo que mais se intensifica de dia para dia”. E que fenómeno é esse?

“[O] apagamento, talvez o desmantelamento, da forma política que, desde há tantos séculos, abrigou os progressos do homem europeu, a saber, a nação.”

Como estamos no domínio das ideias, o argumento de Manent é teórico: terá sido por efeito da democracia que se começou a questionar, na Europa, as condições de possibilidade da própria democracia: o estado soberano e a nação, o mesmo é dizer, o estado-nação. As consequências desse questionamento são, para quem se debruça sobre a história das ideias, dramáticas. Afinal,

“O Estado-nação foi para a Europa moderna o que a cidade foi para a Grécia antiga: aquilo que produziu a unidade e, portanto, o quadro de sentido, da vida, produzindo a coisa comum.”

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Trata-se, sublinhemos, do paradoxo máximo: aquilo que garantiu a democracia moderna – o estado-nação – era agora entendido, em nome da própria democracia, como o último obstáculo a derrubar, e de acordo com uma narrativa que fazia esquecer que não pode haver kratos do demos sem kratos nem demos.

Quando Manent publicou as suas reflexões estava, como todos os bons intelectuais, a intuir algo que ainda não era evidente para a consciência comum, como ele próprio diz. E não deixa de ser surpreendente que, em menos de vinte anos, essa intuição tenha assumido uma forma tão clara. Falar hoje em identidade nacional parece constituir um sacrilégio capital. Como se a convicção de que as comunidades se organizam em torno de uma história, língua e sentido comuns fosse inconcebível. Como se a ideia de acreditar que ser português é mais do que diligenciar um formulário burocrático fosse imoral. Como se essa coisa a que chamam democracia pudesse existir sem um sentido de projeto coletivo, interesses partilhados, um terreno comum de que necessariamente partimos para podermos discordar.

Utilizemos as duas palavras a que Manent recorre: apagamento e desmantelamento. Na Europa, o desmantelamento tem acontecido, fundamentalmente, pelas mãos da União Europeia e a sua sede crescente de tudo ocupar – em clara violação não só daquele que foi um dos seus princípios fundadores, o da subsidiariedade, como também do seu lema, In varietate concordia. Naturalmente, eventos específicos propiciaram essa evolução: tanto a crise financeira convertida em crise das dívidas soberanas, como as crises ambiental, pandémica e militar garantiram razões (ou desculpas) para a UE expandir o seu poder – o que se traduz numa deslocação das decisões para centros de poder cada vez mais distantes da responsabilização democrática. Aos olhos da história, a UE parece-se cada vez mais com o império romano, não só na sua essência jurídico-burocratizante, mas também na ânsia de alargar continuamente as suas fronteiras, quanto mais não seja para garantir a pax romana. Mas a última coisa que podemos dizer do grande império é que foi democrático e todos sabemos como acabou.

Já o apagamento tem sido levado a cabo por uma ideologia globalista que pretende dissolver todas as fronteiras e diferenças. É esta dimensão, mais insidiosa, que se tem manifestado crescentemente entre nós. É ela que tenta condicionar o modo como discutimos decisões políticas e faz cair o ultraje político sobre todos os que ousam pôr em causa os seus dogmas, misturando tudo no caldo da xenofobia, racismo e ideias de direita radical. É ela que leva a que, até no dia em que celebramos a nossa nação, essa nação que é tão antiga que abre os olhos de espanto quando ouve dizer que outros países mudaram de nome, se receie dizer que o 10 de junho é dos portugueses. Caminhamos para os 900 anos de história, e esse é o nosso grande legado, como diriam Mário Soares e Eduardo Lourenço: convém não o apagar.

Mas reconheçamos: é difícil definir nação, sentimento de nacionalidade ou identidade nacional. Não passa certamente por um formulário burocrático, um domínio básico da língua ou uma permanência no território por um dado período, o que esvaziaria o sentido de cidadania e pertença. Também não passa pelo domínio da história ou dos mitos da nação, critério que excluiria muitos que se consideram patriotas. Também não passa certamente por dizer que somos os melhores do mundo, uma banalidade inconsequente. É possível que alguns se tornem portugueses, e há portugueses que não têm amor ao país. De facto, o trabalho conceptual da filosofia revela-se infrutífero e a ciência política ajuda muito pouco. Mas quando vemos as imagens dos nossos emigrantes lá fora, tomados de emoção por receber um simples autocarro com jogadores de futebol, acedemos, por breves instantes, ao que é saber-se português.